30/12/2016

HUGO SÉNECA

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Não há humores perfeitos

É necessário criar mecanismos que limitam o ciberbullying, evitam notícias falsas como aquelas que circularam em plena campanha eleitoral dos EUA ou que impedem que uma faixa da comunidade se torne bode expiatório dos males do mundo, mas convém estar especialmente atento na hora em que a defesa dos fracos e vulneráveis servir de desculpa para limitar a liberdade de expressão de humoristas - e dos internautas em geral.

Um dia, talvez menos distante do que seria desejável, poderei vir a ser proibido de publicar piadas sobre a Eugénia com quem trabalho e também sobre a eugenia que alguns humanos de mau gosto por aí preconizam. Não é por essa proibição ser aplicada que deixará de haver quem conte piadas de mau gosto sobre a eugenia e nada garante que a Eugénia com quem trabalho deixa de rir com uma piada que vai além do que preconiza a igualdade de género. Mas nesse dia, saberemos então que, em detrimento da liberdade de todos e cada um de nós, teremos assistido à eugenia de uma multidão de personagens que hoje são caricaturados por humoristas ou apenas pessoas que até nem se dedicam ao ofício, mas gostam de dizer piadas nas redes sociais, fóruns ou e-mails com mais de um destinatário.

Nessa altura, Ricardo Araújo Pereira, provavelmente o humorista mais reconhecido pelo público desde Herman José, e Rui Sinel de Cordes, provavelmente o mais cruel dos cultivadores do humor negro desde que há TV em Portugal, terão de se conformar em ser quadradões e a escreverem o que uma qualquer polícia do gosto lhes ditar. E nesse dia que eu espero que nunca aconteça, só haverá piadas divulgadas em público com pessoas normais. Os ciganos e os africanos não terão a veleidade de serem considerados pessoas suficientemente normais para figurarem em piadas; os homossexuais também não; as mulheres que são vítimas de violência doméstica serão ignoradas; os deficientes idem; e nem sequer haverá uma menção aos sem-abrigo, às vítimas de cataclismas e guerras, aos que vivem em regime de escravatura, aos que não têm sequer dinheiro para pagar medicamentos, aos analfabetos e aos que vivem em regiões ultraperiféricas sem maternidades e hospitais, aos impotentes que não conseguem manter um namoro, às loiras só porque são tema recorrente, aos alentejanos porque afinal eram os minhotos que inventavam tudo ou até a alguns ricos, que apesar de terem tudo, vivem em depressão e sofrem de ludodependência ou de alcoolemia… até não ser possível encontrar pessoas normais neste mundo para figurarem em piadas.

Em paralelo, saberemos que aqueles que ainda têm a mania de serem “normais” (sim, com aspas por respeito à realidade), estarão impedidos de estimular a curiosidade, de sentir compaixão, de questionar, de criticar, de denunciar ou apenas de rir com anedotas que envolvam pessoas que não correspondem à norma. Vamos deixar de contar piadas com a cor da pele, mas eventualmente não saberemos nada mais sobre as pessoas que têm a cor da pele diferente da nossa. Os dois tipos de interlocutores vão acreditar que, realmente, têm mesmo diferenças insuperáveis. E farão disso tabu. Enfim, lá se vai o efeito de tolerância e mitigação da tragédia que os estudiosos atribuem ao humor desde o início do século 20.

Sim, as piadas de mau gosto acabam, mas não tenham dúvidas de que as violações, o desemprego, as extorsões, a violência doméstica, a discriminação de género e a orientação sexual, a escravatura, as guerras, os infanticídios, as deficiências insuperáveis e as doenças incuráveis vão continuar, com maior ou menor taxa de incidência. Só não haverá é quem publique piadas com estes temas.

De alguma forma, o mote já foi dado, recentemente, com uma coima ao humorista Rui Sinel de Cordes por ter feito um chorrilho de piadas de mau gosto sobre o Natal, com pais natais e pedofilia à mistura. O programa passou à tarde – e por isso compreendo que tenha sido aplicada a coima de 20 mil euros pela Entidade Reguladora da Comunicação Social. Mais difícil de entender é a justificação apresentada pela ERC: «o exercício da liberdade de expressão, ainda que no campo do humor, não pode ser utilizado como estandarte à sombra do qual se perpetrem ofensas que visem enxovalhar, desprestigiar, rebaixar ou humilhar determinado grupo de cidadãos ou indivíduos». Mais um bocadinho e estamos todos limitados às piadas sobre a colocação de açúcar nos boiões do arroz para enganar as formigas.

Nunca fui fã e duvido que alguma vez ache grande piada a Sinel de Cordes – mas acho que tem direito ao mau gosto. É isso a liberdade – e tenho muitas dúvidas de que seja possível conciliar este direito com o conceito de liberdade defendido pela deputada Isabel Moreira num texto publicado no Expresso: «A esquerda, por definição, não absolutiza a liberdade em qualquer dimensão – e por isso também não o faz na liberdade de expressão – porque isso é a base da exploração dos mais fracos, das mulheres, dos pobres, dos negros, da comunidade LGBT, enfim, da parte mais frágil da sociedade, pelos mais fortes, pelos sexistas, pelos racistas, pelos xenófobos, pelos homofóbicos».

Não é preciso ser especialmente experiente e vivido para saber que uma deputada não faz toda a esquerda. E posso apontar três razões: 1) aquela declaração não corresponde à verdade histórica e nem sequer respeita a correta definição de liberdade; 2) cada uma das pessoas, na plena posse das suas faculdades, pode enveredar por múltiplas esquerdas que não cabem no que a senhora deputada considera ser a esquerda; e 3) mesmo dita com a convicção de quem julga conhecer as origens do Universo, aquela declaração esconde um potencial atentado à liberdade de expressão de todos os cidadãos, que hoje usam a Net como quiserem – e com o mau gosto que lhes coube em sorte.

Presumo que, sendo deputada, Isabel Moreira não defende posições em vão. Pelo que tenho sempre de pensar no que acontecerá se as suas ideias de liberdade alguma vez forem aplicadas. Será que as vítimas terão de solicitar à junta de freguesia declarações de pobreza para evitar a chacota? E as falsas declarações de rendimentos e os indícios de riqueza injustificada vão ou não ser importantes na hora de apurar a responsabilidade do autor de uma piada que mancha a honra de milhões de vítimas? E será que só os ricos e poderosos é que poderão ser proibidos de dizer piadas dos fracos e vulneráveis, ou será que os fracos e vulneráveis também estarão impedidos que dizer piadas dos respetivos companheiros de desgraça? E se estes fracos e vulneráveis quiserem contar piadas sobre ricos e fortes, será que podem?

E por fim uma questão ainda mais pertinente: será que, para acomodar a tentação da igualdade, a Constituição da República Portuguesa vai, por paradoxo, mudar o artigo 13º que institui que «todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei e que ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual»? Será que este princípio só conta para as “vítimas” das piadas ou fica suspenso para quem as conta?

A maioria das pessoas de bom senso poderá achar que todas estas probabilidades são demasiado estúpidas para alguma vez acontecerem… mas se calhar essas pessoas de bom senso também achavam demasiado estúpido que PSD, CDS, e PS subscrevessem, na Assembleia da República, uma proposta legislativa que obrigava os meios de comunicação social a indicarem previamente a forma e os recursos usados na cobertura de uma campanha eleitoral – e isso aconteceu num passado recente e felizmente a proposta não seguiu em frente.

Bem sei que é necessário criar mecanismos que limitam o ciberbullying, evitam notícias falsas como aquelas que circularam em plena campanha eleitoral dos EUA ou que impedem que uma faixa da comunidade se torne, exclusiva e repetidamente, bode expiatório dos internautas que se queixam dos males do mundo, mas ficarei especialmente atento na hora em que a defesa dos fracos e vulneráveis (que eu aplaudo, note-se, do mesmo modo que acho que uma campanha contra a fome não pode limitar o humor) for distorcida e aproveitada em favor dos fortes e poderosos para impedir que, por exemplo, alguém denuncie as atrocidades de um ditador contando uma piada com habitantes de um campo de concentração.

Na União Soviética dos anos 1930, também não havia piadas de mau gosto. Algumas das altas patentes da KGB faziam sugestões a Prokofiev sobre a melhor forma de compor sinfonias. Felizmente, hoje é possível fazer piadas com este caso, apesar de ser de uma crueldade extrema, porque aniquila, à partida, a mais ínfima possibilidade de sair do cânone definido e dá largas à estupidez que quer formatar ideologicamente a arte (ou o humor) só porque pode ter uma mensagem política. Que se saiba nunca nenhum dos algozes do regime soviético alguma vez negou que era de esquerda. Não tenho dúvidas de que Isabel Moreira sabe que não basta ser de esquerda para garantir a salvação dos mais fracos e oprimidos. Mas falta-lhe perceber que os humoristas não têm por missão salvar a humanidade. E que, sem liberdade, o humor não tem piada nenhuma.

IN "EXAME INFORMÁTICA"
19/12/16

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