Que me abrace
e nunca me deixe
O telejornal e a telenovela? A noite promete ser daquelas em que é preciso adivinhar o que está a dar nas imagens tremidas da televisão.
Quando
se mete de chuva, a minha mãe borda à janela e eu fico a ver a água a
correr pelo quintal, mais ou menos esquecida de tudo, naquele silêncio
nosso. Nós temos discussões, zangas, gritos, amuos e aquele silêncio dos
dias de chuva, quando a minha mãe desliga a telefonia para não gastar
as pilhas e eu penso em ser grande, em vestidos ou escrevo o nome no
vidro embaciado pela minha respiração. Às vezes dá só para Lina Marta,
quando é maior cabe o sobrenome.
Ao longe, no mar, ouvimos
rebentar um trovão, mas a minha mãe não tem medo de trovoadas, nem de
almas de outro mundo e enfia a linha na agulha como se nada fosse, como
se estivesse um dia de sol. Olho de relance e não parece ouvir o assobio
do vento nos eucaliptos, nem me parece preocupada com a antena, que
abana em cima do terraço. O telejornal e a telenovela? A noite promete
ser daquelas em que é preciso adivinhar o que está a dar nas imagens
tremidas da televisão.
Debaixo do zinco do poço de lavar, o Pepe
deve estar todo encolhido, que é como eu e não gosta de chuva. O tempo
demora mais a passar e o vento derruba os cântaros no quintal e não me
deixa ir sonhar para cima do terraço. Assim dentro de casa não vale e eu
tenho a ideia que para sonhar é preciso um lugar longe da minha mãe.
Agora deu-me para ter segredos e discutimos muito, a minha mãe e eu. E
não sei explicar a razão, ainda há dois anos seguia-a como uma sombra,
contava-lhe tudo e queria que me abraçasse à noite antes de apagar a
luz.
Agora tenho medo que oiça os meus pensamentos, que descubra
que acho bonitos três rapazes dos Ilhéus e que sofro porque não me
ligam. Eles não sabem, nunca falamos sequer e eu até tenho vergonha de
olhar. É um segredo, daqueles bem escondidos para ninguém saber. Eu sei
bem que sou a gordinha do 7º-3º, que usa saias de fazenda feitas em
casa, tem uma pasta amarela e não consegue saltar o pelintro nas aulas
de educação física. E os rapazes não olham para miúdas assim, sobretudo
os que são bonitos, populares e que jogam à bola no campo de cimento nos
intervalos.
E eu gostava de ser diferente, de ter roupas que a
minha mãe não pode comprar, de ser outra pessoa e não aquela que passa a
tarde de chuva a olhar o quintal e usa saias feitas com os restos dos
tecidos da alfaiataria do tio Humberto, que é mais barato e a minha mãe
até às pilhas da telefonia faz contas. Também gostava de não discutir,
de conter a revolta, de ser justa e capaz de dizer que ainda sou a
mesma, que ainda tenho medo de trovoadas e do escuro e que queria muito
que me abraçasse como antes, como da vez em que tive dores de ouvidos.
A
chuva cai mais forte, a água escorre pelos quadrados do quintal e eu
vejo as horas no relógio do crisma. Ao longe, um clarão precede a
trovoada, mas está longe e a minha mãe diz que não há perigo como se
conseguisse mesmo adivinhar-me os pensamentos. Será que sabe que acho
bonitos uns rapazes dos Ilhéus, que me sinto triste muitas vezes, que
amuo e grito quando quero apenas que me abrace e nunca, nunca me deixe?
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS DA MADEIRA"
30/10/16
.
Sem comentários:
Enviar um comentário