16/10/2016

FERNANDA CÂNCIO

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Táxis uber alles?

Anteontem apanhei um táxi. Conduzia-o um imigrante de leste, jovem, simpático e correto. Faz aquilo há menos de um ano, para um patrão com vários carros. Teve de tirar o curso de habilitação - ou seja, investiu cerca de 500 euros - mas, ao contrário do que asseveram os representantes dos taxistas ser obrigatório, não tem contrato. Recebe 35% do valor marcado no taxímetro, dinheiro na mão. Não passa recibos, não desconta para a Segurança Social nem paga impostos. E assevera que grande parte dos motoristas estão nas mesmas circunstâncias.

Não faço ideia se a última frase é verdadeira. Mas, o que é grave, não creio que alguém saiba - a começar pelas autoridades. Ou pelo PCP, o partido que neste processo tem estado mais claramente do lado das reivindicações do setor, alegando ser a Uber símbolo da economia informal e da desregulação. E tem razão no que respeita à Uber. Mas e os táxis, como é? Cumprem as leis? Ninguém diria: biscateiros, faturas passadas apenas a pedido e de má vontade, carros a cair aos bocados e imundos, condutores malcheirosos, intoxicados, mal educados, agressivos, ladrões - já se viu de tudo. E agora, na segunda-feira, um dia inteiro de bloqueio de um aeroporto e de agressões e insultos em direto. São estes os heróis da classe operária, sério?

Não; não se trata, como vi escrito por muita gente estimável, de serem antipáticos e não se saberem defender - ou, como também li, de pertencerem ao povo, como se ser do povo significasse ser delinquente, machista e homofóbico. Trata-se, isso sim, de estarem muito longe de constituir um modelo de respeito pelos valores que supostamente representam. Haverá no setor quem cumpre as regras, claro, como há taxistas cordatos, honestos, asseados e que são os primeiros a desdenhar os que o não são (e a serem por estes prejudicados). Mas qual será a percentagem de fuga ao fisco? E de trabalho ao negro? E em que é que isso se distingue, na prática, da desregulação protagonizada pelas Ubers?

Haver muitas regras e não serem cumpridas porque ninguém as faz cumprir ou haver poucas ou nenhumas: nenhuma das opções é aceitável, nenhuma é justa. O Estado serve para mais do que aprovar leis. Tem de garantir que são cumpridas. E se por essa razão é escandaloso que o secretário de Estado da tutela diga (na RTP) que não tem de ter opinião sobre se a Uber e Cabify estão ilegais "porque isso é com os tribunais", é igualmente escandaloso que se permita há décadas a desobediência do setor de táxi às exigências legais, incluindo a do respeito pelos direitos dos trabalhadores - e dos clientes, que também são gente. O capitalismo selvagem e a roubalheira devem ser denunciados e combatidos quer usem boné e unha do dedo mindinho comprida quer não tenham rosto. Como a violência gratuita e o sexismo devem ser condenados - e punidos - venham de onde vierem. Sob pena de se concluir que todos os princípios são instrumentais.

IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
14/10/16

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