14/10/2016

ANA SOUSA DIAS

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Caminheiros substituem banhistas

Não sei se foi sorte ou consequência de alterações no clima, mas a praia no fim de setembro foi uma ótima experiência. Pouca gente (na esmagadora maioria estrangeiros reformados e casais com crianças pequeninas), uma temperatura não demasiado quente, e nem o levante algarvio teve outro efeito além da mudança da bandeira verde para amarela. Porém, uma coisa me intrigou. É que os longos areais tornaram-se pistas para caminhadas persistentes. Médicos de todo o mundo: a vossa cruzada para pôr as pessoas a andar está a resultar, pelo menos na faixa etária que se pode permitir fazer férias em tempo de aulas.

O que me causou dúvidas foi que os andantes (não os do metro do Porto, mas os das extensões de areia clara e macia) pareciam ignorar a presença do mar. Andar era o objetivo essencial e até me cruzei (também eu caminhante e aproveitando para observação do comportamento humano) com uma senhora que usava bastões para avançar na areia, o que me pareceu um bocado exagerado e pouco prático. Por princípio e por ter ultrapassado a longa fase em que ir à praia significava transportar penosa e energicamente toneladas de carga (comida, bebida, malas isotérmicas, brinquedos, braçadeiras, boias, pranchas, bolas, toalhas, mudas de roupa, chapéu-de-sol e outras utilidades que já esqueci, além das próprias crianças desprovidas de vontade de andar), só o estritamente indispensável me acompanha.

Aquilo que me parece intrínseco à ideia de ir à praia – o banho de mar – parece estar fora das conjeturas dos praistas, desprovidos portanto da condição de banhistas. Estavam ali para andar. Pelo areal havia ilhas de toalhas tapando pertences, montinhos que os proprietários identificavam de longe pelas cores e que tinham deixado bem arrumados logo à chegada, no afã de dar início à excursão até à praia seguinte, e à seguinte, e à seguinte, e regresso à casa de partida. Tudo isto se passava a) durante a maré baixa, quando a superfície de areia descoberta é mais ampla; b) fora das horas em que o sol escaldava – mesmo sendo outono, e dadas as tais eventuais sorte ou preocupantíssimas alterações climáticas, estava suficientemente quente para ameaçar escaldões em corpos pálidos.

Ao fim da tarde, com as gaivotas chegavam os pescadores, equipados com canas invejáveis e todos aqueles apetrechos e baldes que os caraterizam. Mudança geracional: nos pés, em vez de botas de borracha grossas e pesadas, meias de surfista.

No último dia, mudei de praia, por curiosidade. Experimentei uma mais aconchegada, linda e rodeada de rochas, um aviso à chegada para eventuais derrocadas, longas escadas de madeira. E então aí o passado feito de ondas, braçadas e carreirinhas voltou. O levante não afastava as pessoas do mar, talvez porque qualquer caminhada se tornaria um vaivém repetitivo, oitenta metros para lá, oitenta para cá. A água estava quente, como esteve todo o verão, realmente apetitosa. Não sei se por milagre, até havia jovens a mergulhar e a demorar-se na rebentação, furando ondas, caindo aparatosamente enrolados.

O velho banheiro de pele curtida e calção vermelho, ainda na praia mas fora de horas, disse-me: desta vez o verão vai até à Festa da Guia. Direi mesmo mais: neste ano, o verão ultrapassou a Feira da Guia que ontem fez concorrência ao enorme centro comercial.


IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
09/10/16

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