Caminheiros substituem banhistas
Não sei se foi sorte ou
consequência de alterações no clima, mas a praia no fim de setembro foi
uma ótima experiência. Pouca gente (na esmagadora maioria estrangeiros
reformados e casais com crianças pequeninas), uma temperatura não
demasiado quente, e nem o levante algarvio teve outro efeito além da
mudança da bandeira verde para amarela. Porém, uma coisa me intrigou. É
que os longos areais tornaram-se pistas para caminhadas persistentes.
Médicos de todo o mundo: a vossa cruzada para pôr as pessoas a andar
está a resultar, pelo menos na faixa etária que se pode permitir fazer
férias em tempo de aulas.
O que me causou dúvidas foi que os
andantes (não os do metro do Porto, mas os das extensões de areia clara e
macia) pareciam ignorar a presença do mar. Andar era o objetivo
essencial e até me cruzei (também eu caminhante e aproveitando para
observação do comportamento humano) com uma senhora que usava bastões
para avançar na areia, o que me pareceu um bocado exagerado e pouco
prático. Por princípio e por ter ultrapassado a longa fase em que ir à
praia significava transportar penosa e energicamente toneladas de carga
(comida, bebida, malas isotérmicas, brinquedos, braçadeiras, boias,
pranchas, bolas, toalhas, mudas de roupa, chapéu-de-sol e outras
utilidades que já esqueci, além das próprias crianças desprovidas de
vontade de andar), só o estritamente indispensável me acompanha.
Aquilo que me parece intrínseco à ideia
de ir à praia – o banho de mar – parece estar fora das conjeturas dos
praistas, desprovidos portanto da condição de banhistas. Estavam ali
para andar. Pelo areal havia ilhas de toalhas tapando pertences,
montinhos que os proprietários identificavam de longe pelas cores e que
tinham deixado bem arrumados logo à chegada, no afã de dar início à
excursão até à praia seguinte, e à seguinte, e à seguinte, e regresso à
casa de partida. Tudo isto se passava a) durante a maré baixa, quando a superfície de areia descoberta é mais ampla; b)
fora das horas em que o sol escaldava – mesmo sendo outono, e dadas as
tais eventuais sorte ou preocupantíssimas alterações climáticas, estava
suficientemente quente para ameaçar escaldões em corpos pálidos.
Ao fim da tarde, com as gaivotas chegavam
os pescadores, equipados com canas invejáveis e todos aqueles
apetrechos e baldes que os caraterizam. Mudança geracional: nos pés, em
vez de botas de borracha grossas e pesadas, meias de surfista.
No último dia, mudei de praia, por
curiosidade. Experimentei uma mais aconchegada, linda e rodeada de
rochas, um aviso à chegada para eventuais derrocadas, longas escadas de
madeira. E então aí o passado feito de ondas, braçadas e carreirinhas
voltou. O levante não afastava as pessoas do mar, talvez porque qualquer
caminhada se tornaria um vaivém repetitivo, oitenta metros para lá,
oitenta para cá. A água estava quente, como esteve todo o verão,
realmente apetitosa. Não sei se por milagre, até havia jovens a
mergulhar e a demorar-se na rebentação, furando ondas, caindo
aparatosamente enrolados.
O velho banheiro de pele curtida e calção
vermelho, ainda na praia mas fora de horas, disse-me: desta vez o verão
vai até à Festa da Guia. Direi mesmo mais: neste ano, o verão
ultrapassou a Feira da Guia que ontem fez concorrência ao enorme centro
comercial.
IN "NOTÍCIAS MAGAZINE"
09/10/16
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