19/09/2016

MIGUEL VALE DE ALMEIDA

.



A gayringonça 
– os direitos LGBT 
e a esquerda em Portugal

No PREC ninguém queria saber de direitos dos homossexuais (a expressão LGBT não existia ainda e o sexismo dominante não especificava as lésbicas). Não é necessário sequer lembrar a frase de Galvão de Melo sobre o 25 de abril não ter sido feito para tal gente, já que ela foi proferida por alguém que provavelmente diria o mesmo em 2016. Através do silêncio ou da omissão, a frase – proferida em reação a um já histórico comunicado do CHOR, o Coletivo de Homossexuais Revolucionários – também poderia ter sido proferida por quase toda a esquerda, que se manteria a milhas de questões de orientação sexual e identidade de género. O 25 de abril, o PREC, a Constituição, tudo seria feito sob a égide de direitos vistos como valendo mais do que outros, ou como mais determinantes, e correspondendo a enquistadas cartilhas marxistas de então, centradas no económico, ou a suaves liberalismos centrados nos direitos políticos.

É certo que a igualdade de género teve um empurrão notável – ainda que a questão do aborto tenha sido, e durante muito mais tempo, o rubicão por transpor. Mas até a igualdade de género – para mim indissociável de questões de sexualidade e sempre condição fundamental para estas – terá decorrido mais da aplicação dos direitos civis e políticos democráticos, do que da ação de um forte movimento feminista ou da inclusão do feminismo na agenda e pensamento da maior parte da esquerda.

Com exceções marginais, claro. Em torno dos movimentos trotsquistas, os anos 80 viram surgir formulações políticas em torno das questões LGBT, à época glosadas em termos de “libertação gay” e de “esquerda gay”, de afirmação das identidades, de luta contra o patriarcado e não tanto em termos de exigências de igualdade legal. Nisto o PSR foi fulcral – mas a sua relativa marginalidade no sistema e a formatação ideológica terão impedido a expansão das causas para a sociedade em geral.

Sem dúvida que as transformações sociais decorrentes do desenvolvimento e da integração europeia fizeram sentir os seus efeitos nos meios urbanos dos finais dos anos 80, com crescentes vivências e consciências culturais e identitárias entrosadas com a globalidade gay e lésbica. Mas foi, como noutros países, a crise do HIV-Sida que paradoxalmente deu a volta à situação. Foi a partir do ativismo da Sida, da tomada de consciência das pessoas afetadas direta ou indiretamente pela pandemia e pelos seus efeitos simbólicos e políticos, que nasceu uma consciência identitária e posicional em torno da sexualidade. A fundação da ILGA-Portugal foi disso o marco mais óbvio e fundamental.

Em contextos onde o movimento gay e lésbico já existia há muito, e até constituindo centros de referência, quando não mesmo de hegemonia, como os EUA, a crise da sida possibilitou a mudança do paradigma da “libertação gay” para o do reconhecimento e igualdade de direitos. Portugal apanhou o comboio já nesta segunda fase do movimento mas apanhou um comboio expresso. E apanhou-o com a reivindicação da inclusão da orientação sexual no artigo 13º da Constituição. Ou seja, desde o início da ILGA-Portugal, aquela que seria a principal organização de direitos LGBT – e doravante assim chamados, em sintonia com as transformações internacionais no pós-crise da sida – as questões colocaram-se em Portugal no plano legal, constitucional, da igualdade. Em suma, como questões de toda a sociedade. Essa foi uma das principais razões para o sucesso da luta.

Que sucesso foi esse? A penetração da agenda LGBT nos partidos políticos e, por essa via, na comunicação social. Da esquerda à direita – por apoio, hesitação ou recusa. Se no verão quente de 1975 o problema era que nem se colocava a questão como pensável, a partir de meados dos anos 90 e inícios do século 21 não havia como não colocar a questão. Aquilo a que se assistiu a partir de então foi ao avanço da agenda dos direitos LGBT no leque político-partidário: a adesão já não só pelo trotsquismo mas, sobretudo, pelo nóvel Bloco de Esquerda – e também pelos Verdes; a hesitação por parte do PCP e do PS, ainda que neste a JS tenha tido um papel pioneiro na apresentação de propostas. Propostas que, durante muito tempo vindas do Bloco, dos Verdes ou da JS, na esquerda mais tradicional e da governação sempre acabavam tendo algum “mas” – como no caso das uniões de facto e da exceção no acesso à adoção por casais do mesmo sexo, exceção que depois se prolongaria na questão do casamento, ou nas hesitações do PCP face à procriação medicamente assistida.

A questão do casamento seria a questão simbólica chave para a total entrada da agenda LGBT na política nacional e sobretudo na esquerda. Após a vitória no referendo sobre a interrupção voluntária da gravidez, a esquerda encontrou-se perante uma barragem que ruiu – nem a Igreja Católica parecia mais ter o poder que se temia, nem (a julgar pelos resultados, que tinham necessariamente de dever-se também a muitos eleitores de direita) as questões de género e sexualidade pareciam seguir clivagens político-ideológicas claras e definidas. O país “pós-modernizava-se”. O debate sobre o casamento teve, aliás, a virtude de demonstrar novas e mais subtis clivagens: desde setores radicais de esquerda anti-casamento por razões ideológicas; passando por difíceis negociações internas no PS entre conservadores e progressistas, “resolvidas” com a exceção da adoção, ou hesitações entre os comunistas face a alguns temas na agenda LGBT; até ao surgimento de políticos de direita “mas liberais nos costumes”.

A igualdade no acesso ao casamento foi a aposta central e estratégica – e completamente vencedora e certeira – de associações na mesma área sociopolítica (a ILGA, a rede ex-aequo ou, mais tarde, a Amplos – abrangendo pessoas de várias esquerdas, muitas sem partido e algumas mesmo despolitizadas no sentido tradicional) e da sua aposta no trabalho de lobbying político, de aposta no legislativo como marca de um contrato social legitimador. Abertas as portas do casamento, assistiu-se a uma transformação interna no PS que, a partir da chegada de António Costa à direção, assumiu totalmente a agenda LGBT já sem hesitações, à semelhança do que já fazia o Bloco de Esquerda, bem como a um trabalho de criação crescente de consensos internos no PCP (cujo resultado final estava sempre, de qualquer modo, tornado claro nas posições dos Verdes).

Hoje Portugal avançou ao ponto de ser um dos principais países do mundo inteiro em termos de igualdade de género, orientação sexual e identidade de género no plano legal. Coexiste esta realidade com outra, a de uma sociedade fortemente familista e dependente de relações interpessoais de reconhecimento nos planos laboral, político e mediático, que constrangem quer processos de saída do armário, quer o usufruto dos direitos e a vigilância e punição da discriminação. Essa é mais uma característica de uma sociedade dual, que vive aspetos de pré-modernidade ao mesmo tempo que aspetos de pós-modernidade, parecendo às vezes ter saltado o que poderíamos abusivamente denominar como “modernidade” e a sua normalização da igualdade corporizada nos e vivida pelos indivíduos. Esse é todo o trabalho que falta fazer e que será a principal tarefa de um movimento social LGBT, que foi (e é), no seu segmento maioritário e mainstream (expressão que uso como descrição, e até elogio, e não como crítica) um autêntico caso de sucesso em Portugal. Parte do sucesso é ter transformado a esquerda – tendo inclusive ajudado a que ela se transformasse em algo de mais sedutor e de mais claramente distinto e distinguível de um “centrão”.

Quase se pode dizer que antes da geringonça, houve uma verdadeira e bem sucedida gayringonça.

IN "GERINGONÇA"
17/09/16

.

Sem comentários: