01/08/2016

VIRGÍNIA TRIGO

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Recursos ociosos 

Contar histórias é um meio poderoso de comunicar porque exige da parte de quem nos lê uma boa dose de imaginação. A história que vos vou contar tem-me sido invocada um sem-número de vezes a propósito disto ou daquilo e cito-a de memória.

Há muitos, muitos anos (220 - 280 d.C.), existiam na China três reinos que constantemente se guerreavam entre si. Numa dessas guerras, o exército de um dos reinos comandado pelo general Zhou Yu preparava-se para atacar os outros dois, a sul do rio Yangtze e que entretanto se tinham aliado. A estes faltavam flechas e a consternação aumentava à medida que o exército engrossava do outro lado do rio. Que não se preocupassem disse Zhuge Liang, o comandante do exército aliado, enquanto se ocupava a beber e a escrever poemas: em breve conseguiria nada menos do que cem mil flechas. Tarefa impossível pensavam os soldados a quem o general ordenara que fabricassem um número considerável de bonecos de palha.

Num determinado dia pela manhã, com o exército de Zhou pronto para atacar, levantou-se um enorme nevoeiro e foi então que Zhuge mandou avançar vinte barcos ao ritmo ensurdecedor de tambores levando na proa os enormes bonecos de palha. Quando Zhou viu avançar na sua direção aquela frota fantasmagórica ordenou aos seus soldados que atirassem o mais que pudessem. Os barcos nunca chegaram ao destino, uma vez repletos de flechas regressaram à margem e quando estas foram retiradas dos bonecos de palha todos puderam ver que eram muito mais do que cem mil.

É este o tipo de histórias que as crianças chinesas ouvem na escola ou ao deitar e que deleitam um ou outro estrangeiro mais interessado. Elas ilustram a importância do pensamento estratégico no contexto chinês que privilegia a preparação e o aproveitamento da situação em detrimento da ação: a melhor forma de obtermos os recursos que nos faltam é aproveitarmos os dos outros. Na história dos bonecos de palha é também importante o conhecimento da situação para melhor se fazer a preparação. Zhuge conhecia o rio e sabia que naquela época do ano eram habituais os nevoeiros,  só teve de esperar pela melhor ocasião. A preparação, o conhecimento da situação e a ocasião são ideias centrais ao sucesso de qualquer estratégia.

Este episódio, retirado do romance clássico "Os Três Reinos", não é o único que nos ensina a arte de utilizar em nosso benefício os recursos do adversário. O terceiro dos 36 estratagemas - uma outra fonte de sabedoria chinesa -, "matar com uma faca emprestada", remete-nos para um outro princípio clássico da estratégia militar chinesa "se quiseres fazer algo, experimenta deixar que o teu oponente o faça por ti". Utilizar uma "faca emprestada" significa usar os recursos dos outros o que assenta que nem uma luva na atual ideia da economia de partilha que, através das tecnologias de informação, possibilita o encontro da oferta com a procura e a otimização de recursos ociosos em poder de outros. 

Numa época de excesso de recursos em que muitos deles se encontram inativos, a maior parte do tempo (por exemplo, o nosso carro), "matar com uma faca emprestada" não enfraquece nenhuma das partes, antes cria vantagem para ambas. Porque esta forma de pensar já está embutida na cultura tradicional chinesa, não é de admirar que a economia de partilha tenha tanto sucesso e se esteja a desenvolver tão depressa no país nas formas já descobertas e nas que ainda há por descobrir.

* Professora no ISCTE Business School

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
27/07/16

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