Em nome da fé
Estamos em guerra, declarou o Papa
Francisco, comentando a vaga de ataques solitários, loucos, cada vez
mais acelerados. Mas a frase, proferida após a morte de um padre,
poderia ser ouvida com ressonâncias que o líder dos católicos quis
excluir sem margem para dúvidas. Guerra, sim. Mas não de religiões.
"Todas as religiões querem a paz. A guerra querem-na os outros,
entendido?"
Em tempos sensíveis, os
riscos de simplificação e generalização aumentam. Há quem queira
acentuar a dicotomia entre cristão e muçulmano, criando um todo onde ele
não existe. Não há nenhum fio de ligação direta entre religião e
fundamentalismo. Tal como nem todos os fundamentalistas são terroristas.
Da mesma forma que nem todos os ocidentais são arrogantes ou estão
convencidos da universalidade da sua cultura. Cada vez que fazemos
catalogações, começa o perigo.
Recusar
qualquer simplificação ou generalização não impede, contudo, a clareza
com que o líder da mesquita de Lyon, Kamel Kabtane, se referiu ao
problema: "O que se passa faz-se em nome do islão e dos muçulmanos". E
esse alerta, lançado por quem tem participado em iniciativas pelo
diálogo inter-religioso, tem um particular sentido. Reconhece o que
temos tanta dificuldade em discutir, por sabermos o risco de nesse
debate tudo ser virado do avesso. Não é uma questão de fé, mas é em nome
dela que se mata.
Perceber a diferença
entre as duas coisas muda tudo. Nada no islamismo justifica atos de
violência. Como nada no catolicismo poderia ter justificado as cruzadas e
guerras santas, os autos de fé e tantos outros episódios gravíssimos de
abusos que mancham a história da Igreja. Mas há motivações que nascem
do facto de, demasiadas vezes, se forçar a religião a dizer o que nela
não está escrito. E importa perceber por que razão o islão e o seu
contexto geográfico e político acentuam o risco de radicalização.
As
religiões são ingredientes poderosos presentes, historicamente, na
construção da identidade dos povos. Para um fundamentalista, o alcorão é
a fonte da qual irradia a forma de organização do Estado, da sociedade e
da moral. Ignorar estas motivações em nada ajuda a perceber o fenómeno.
O
que não quer dizer, insista-se para evitar equívocos, que a fé seja uma
causa. É um descodificador que se relaciona com muitas causas.
Estratégias políticas e de ocupação territorial associadas a fins
religiosos. Conflitos étnicos. Fenómenos de xenofobia, intolerância e
tentativas de ocidentalização. Tráfico de armas. Pobreza e exclusão
social. Psicopatia e mimetismo de falsos heróis. A lista é extensa e só
olhando para a raiz das coisas se estará a travar o combate.
*SUBDIRETORA
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
29/07/16
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