31/07/2016

GUSTAVO PIRES

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Jogos Olímpicos
Bem-vindos à Nova “Guerra Fria”

A 19 de Maio 2016, a WADA (Agência Mundial Anti-Doping) anunciou a nomeação de Richard H. McLaren que, sem se saber porquê, intitulava como “pessoa independente”, para conduzir uma investigação cerca das acusações feitas pelo ex-diretor do Laboratório de Moscovo, Dr. Grigory Rodchenkov relativamente ao processo de controlo do doping na Rússia. A 16 de Julho 2016, foi dado a conhecer o Relatório da investigação que, como não podia deixar de ser, desencadeou uma enorme controvérsia no mundo do Movimento Olímpico (MO).

Desde logo porque, basta olhar para o currículo de McLaren, professor de Direito na Universidade Ocidental, no Canadá; CEO da McLaren global Sport Solutions Inc.; consultor da McKenzie Lake Advogados; e membro to Tribunal Arbitral do Desporto, para se perceber que ele, só com muita boa vontade, pode ser considerado uma pessoa independente. Depois, o Relatório, logo na página número um, mesmo antes de quaisquer considerações iniciais, começa por enumerar as três principais conclusões a que chegou. A saber: (1º) O laboratório de Moscovo funcionava protegendo os atletas russos dopados; (2º) O laboratório de Sochi protegeu os atletas russos através da recolha de uma única amostra que possibilitava a sua troca; (3º) o Ministério do Desporto russo foi conivente com todo o processo. Ora, acresce que estas conclusões foram produzidas num tempo record de menos de dois meses tendo como fonte principal um delator, o referido Grigory Rodchenkov, que fugiu da Rússia para os EUA. Bem-vindos à nova “guerra fria”.

Não se trata de defender ou de atacar a Rússia. Trata-se de saber se um relatório, elaborado nas condições descritas pode, do ponto de vista ético, ser merecedor de qualquer respeito. Fazem parte das competências da WADA elaboração de relatórios com conclusões políticas sobre países? Se olharmos para a sua missão podemos ver que as “atividades chave” que competem à WADA são do domínio científico, educacional tendo em vista o desenvolvimento de capacidades do controlo do doping. Quer dizer que, a sua missão nada tem a ver com a realização de relatórios de tipo policial acerca do que se passa nos países. Neste sentido, o Relatório produzido excede não só a sua vocação e, consequentemente, a sua competência técnica? Por isso, Julio Maglione, membro honorário do Comité Olímpico Internacional (COI), afirmou claramente que “a WADA excedeu os seus poderes”.

Hoje, não restam dúvidas para ninguém minimamente identificado com as questões do desporto de alto rendimento que alimenta a indústria do espetáculo e do entretenimento político e recreativo à escala mundial que, através dos mais variados processos, todos os atletas de alto rendimento se dopam. Entenda-se o doping como a utilização de drogas ou de métodos específicos que visam aumentar o desempenho de um atleta durante uma competição. Assim, uns atletas dopam-se com substâncias autorizadas, outros, com substâncias não autorizadas (sob prescrição médica ou não) e, ainda outros, com substâncias desprezadas ou desconhecidas dos sistemas de controlo. Nesta última situação está o caso da droga denominada “meldonium” ou “mildronate” que, embora administrada aos soldados soviéticos que, na década de oitenta, combatiam no Afeganistão, a fim de lhes aumentar a resistência física e psicológica, contudo, até ao final de 2015, não fazia parte da lista das drogas proibidas. Em consequência, a tenista russa Maria Sharapova foi apanhada desprevenida em princípios de 2016. Acabou sadicamente condenada pela comunicação social e alegremente punida pelas instâncias de controlo que passaram a exibir a atleta como mais um “troféu de caça” na sua cruzada contra o doping.

É da mais profunda hipocrisia e desonestidade intelectual exigir aos atletas esforços sobre-humanos e, depois, deixa-los completamente desprotegidos e sujeitos a, de um momento para o outro, serem crucificados por um qualquer relatório pago certamente a peso de ouro e por uma comunicação social que, se por um lado, não lhes perdoa, por outro lado, esquece e até chega a proteger os verdadeiros responsáveis que são os treinadores, os médicos e outros especialistas, bem como e, sobretudo, os dirigentes desportivos e políticos como se constatou ao tempo da RDA e, agora, desde que caiu o muro de Berlim, se constata em muitos países, cujos dirigentes desportivos e políticos, obcecados pela conquista de medalhas olímpicas, numa atitude protofascista, determinaram o desporto como um desígnio nacional e passaram a copiar o modelo desportivo da RDA suportado numa lógica de centros de alto rendimento e atletas de Estado em prejuízo dos clubes e da generalização da prática desportiva.

Os responsáveis do MO deviam considerar que, para além de todos os discursos moralistas que se faziam ao tempo da luta inglória contra o profissionalismo no desporto, o profissionalismo acabou por vencer. Hoje, a luta acéfala é contra o doping pelo que, quer se goste quer não, o bom senso também acabará por vencer. Desde logo porque o inútil combate ao doping, para além de ter vindo a ser sustentado numa lógica de perseguição aos atletas e não de ajuda aos atletas, agora, está a pretender avançar para uma inaceitável lógica de punição dos países que vai conduzir o MO para um espaço de confronto no âmbito de uma nova “guerra fria” que, no quadro da geo-política, já começa a desenhar os seus contornos como decorre do Relatório Mclaren feito sob a inspiração dos americanos e canadianos.

A enganadora estratégia de combate ao doping através da perseguição e perversão dos atletas só pode ser geradora de injustiças e de descrédito. Jacques Rogge, antigo presidente do COI, em Julho de 2001, imediatamente depois de ter sido eleito, numa entrevista à Germany`s Deutsche Welle Television, manifestou a opinião de que, embora o doping fosse o principal perigo do desporto, o COI jamais ganharia a luta contra a sua erradicação. Contudo, não deixou de manifestar a opinião de que era necessário reduzir ao mínimo possível utilização de substâncias dopantes no desporto. Quer dizer, trata-se de inteligentemente controlar o doping e não de nesciamente combater o doping pelo que a questão deve ser abordada numa perspetiva eminentemente positiva de educação e não numa perspetiva profundamente negativa de perseguição como tem vindo a acontecer. Sobretudo porque combater o doping no desporto não pode significar montar uma rede de atletas delatores como parece ser a estratégia do Tribunal Arbitral do Desporto. Deve, pelo contrário, significar a conceção e execução de uma estratégia inteligente que permita aos atletas, em função dos esforços que fazem e das características do desporto que praticam, serem devidamente ajudados através dos produtos adequados. Até porque um atleta, devido aos esforços que o desporto que o alto rendimento o obriga a fazer, pode ser mais prejudicado não tomando determinados produtos considerados proibidos do que tomando-os sob a vigilância e controlo médico. Por isso, uma estratégia de controlo das substâncias dopantes não passa, seguramente, por tratar os atletas como se fossem bandidos e suspender os CONs tal como se pertencessem a Estados pária.

Em todo este processo que envolve um ataque dirigido à Rússia que, diga-se de passagem, se pôs a jeito, Thomas Bach o presidente do COI, pode ser criticado pela mais genuína inabilidade, incompetência e, até, como o faz a patinadora de velocidade Claudia Pechstein, de “ser comprável” no que diz respeito à maneira como tem gerido o COI e o processo de controlo do doping. Não pode é ser criticado porque, em vésperas dos JO do Rio, ter “salvo” a Rússia de uma vergonhosa suspensão ao remeter para as Federações Internacionais uma decisão que só a elas deve competir: a elegibilidade dos atletas. Desde logo porque sendo o COI uma organização que tem as suas raízes numa cultura com quase três mil anos de existência tem a obrigação de funcionar numa perspetiva de “tempo longo”, pelo que, no respeito pelo princípio da subsidiariedade, não deve tomar decisões em cima dos acontecimentos que até nem lhe competem. Remeter para o COI a elegibilidade dos atletas é destruir o COI. O problema é que, a atual liderança de Thomas Bach tem funcionado em regime de urgência e à cadência dos impulsos que lhe chegam do exterior pelo que, a escassas duas semanas da cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos do Rio, e na base de um relatório elaborado em cima da hora e com pouca credibilidade, acabou por, inacreditavelmente, ficar na situação de eventualmente ter de suspender a Rússia o que, se tivesse acontecido, ia provocar um cisma no COI e no MO internacional de consequências imprevisíveis.

Como é possível que os dirigentes do COI não tenham percebido que com proclamações do tipo “tolerância zero” relativamente ao doping transmitiam uma ideia que não compreendiam nem estavam minimamente preparados para a sustentar? O tempo em que o COI, sem quaisquer problemas, como aconteceu com a África do Sul a partir de 1964 e com a Rodésia a partir de 1968, suspendia países dos JO acabou. Hoje, perante os mais variados apelos à suspensão da Rússia, Thomas Bach teve de capitular perante a vontade de Vladimir Putin que, certamente, lhe deu um “puxão de orelhas” uma vez que a Rússia, em termos da sua imagem externa, não brinca em serviço. E o COI passou pela vergonha de, a 24 de julho, muito antes de qualquer posição oficial relativamente ao Relatório McLaren, ver a Tass a informar a comunicação social que o COI não ia banir a equipa russa de atletismo dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, nem suspender o CON Russo. Em consequência, Thomas Bach, depois de ter andado alegremente a confraternizar com Putin em Sochi, teve de lhe prestar vassalagem, tal como, a partir de agora, prestará ao presidente americano sempre que, no âmbito do MO internacional, os interesses dos EUA estiverem em causa.

Entretanto, o caos olímpico está instalado. Enquanto a russa Yulia Stepanova (corredora de 800 m) que ao denunciar o que se estava a passar na Rússia caiu nas graças da Federações de Atletismo (IAAF) que, para além de a louvar, autorizou-a a competir nos JO do Rio de Janeiro como atleta neutra (embora não se tenha a certeza de que o COI esteja de acordo), a sua compatriota Yelena Isinbayeva (salto à vara) é obrigada a recorrer para o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos uma vez que o COI ratificou a decisão da IAAF, de afastar a seleção russa dos Jogos Olímpicos. Simultaneamente, vários atletas, depois de terem sido condenados por doping e após terem cumprido a pena a que foram sujeitos, estão de volta aos Jogos o que não transmite uma imagem muito positiva para o COI.

O grande problema do COI é que relativamente ao doping optou por uma estratégia de perseguição e delação desencadeada pelos próprios atletas. E a comunicação social, num ato pedagógico profundamente distorcido, até elogia a coragem dos atletas que o fazem, quando, em boa verdade, devia era condenar a cobardia dos dirigentes desportivos que se escondem atrás de um silêncio absolutamente irresponsável. Por isso, Yuliya Stepanova, pelo facto de ter sido praticamente obrigada a ser delatora, considera injusta a decisão do COI de não lhe permite estar presente nos Jogos do Rio. E até argumenta que a decisão do COI põe em causa o surgimento de futuros delatores o que, a acontecer, entra em contradição com decisões já tomadas pelo Tribunal Arbitral do Desporto! Ora, isto coloca o Olimpismo ao nível mais baixo da condição humana em que a lógica dos seus princípios e valores são completamente pervertidos pela lógica da eficiência jurídica das condenações. Se o sistema continuar a evoluir neste sentido é a hecatombe do MO internacional.

Se, do ponto de vista individual, a perseguição aos atletas entrou numa inaceitável lógica de delação, o Relatório McLaren, do ponto de vista institucional, conduziu o COI para uma situação em que, ao atacar diretamente um país, pode estar a entrar num processo incontrolável de auto-destruição uma vez que se transforma num campo privilegiado de luta, da nova “guerra fria”, tal como aconteceu no século passado.

Em conclusão, diremos que, perante a caótica situação que se vive em véspera dos JO do Rio de Janeiro, espera-se que Thomas Bach, imediatamente depois do evento, tenha a dignidade de se demitir porque o COI, nos seus mais de cento e vinte anos de vida, nunca foi sujeito a tal humilhação.

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* Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana

IN " A BOLA"
29/07/16


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