ESTA SEMANA NO
"EXPRESSO"
"EXPRESSO"
Seguradoras com mais acesso a dados
. clínicos para evitar pagar seguros de vida
É preciso saber morrer no sítio certo para os familiares terem o prémio... se tiverem a sorte de bater à porta
O acesso de empresas seguradoras a dados
médicos de pessoas mortas, em busca de informação clínica para alegar
“exclusões de responsabilidade” (deixando assim de pagar o prémio aos
beneficiários do seguro de vida), será uma realidade reforçada com a
nova lei de acesso aos documentos administrativos (LADA), em fase final
de aprovação no Parlamento.
O diploma está a ser discutido na especialidade (a partir de um projeto do Governo, com propostas de alteração de PSD, PS, BE, CDS e PCP), tendo essa votação sido já adiada várias vezes, a última das quais na quarta-feira. Todavia, face ao calendário da atual sessão legislativa, o texto terá de ser votado na próxima semana.
.
A lei não reconhecerá mais direitos às seguradoras. Elas ficarão é com um acesso mais facilitado a dados médicos, pois o canal que lhes tem permitido isso (a CADA, Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos) deverá ver os seus direitos reforçados, segundo a orientação de PSD e PS.
O acesso aos dados de saúde de alguém já falecido nunca se faz por via direta. É preciso um pedido da seguradora ao hospital onde o segurado morreu e/ou foi acompanhado. Noutros casos, os familiares beneficiários do seguro são persuadidos por aquelas empresas a solicitar os elementos.
Com eles, a seguradora pretenderá provar que o segurado omitiu factos ou prestou falsas declarações.
A unidade de saúde não liberta os dados sem o parecer de uma entidade administrativa independente.
Aqui reside a chave da história: não há uma comissão, mas duas (e com orientações quase antagónicas).
Uma é a CADA, que age segundo a lei sobre acesso aos documentos administrativos (e os dados médicos de um indivíduo caem nessa designação se a unidade de saúde for pública). A outra entidade é a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), que funciona ao abrigo da lei de proteção de dados pessoais (e “tutela” tudo o que se passa tanto no público como no privado).
Um retrato cirúrgico da dualidade das duas comissões foi feito em 2011 pelo provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, em exposição ao Parlamento (na qual fez recomendações nunca atendidas): “Se para a CNPD não parece haver qualquer fundamento (...) que permita o fornecimento da documentação clínica aos beneficiários de um seguro de vida para, depois, entregarem essa informação à seguradora; para a CADA o acesso a dados por familiares próximos (cônjuge, filhos) sem o consentimento do segurado para efeitos de ativação do contrato de seguro deve ser admitido”.
Uma dupla bitola
Ou seja: as duas comissões, que podem ter a mesma competência, decidem em sentido diferente. Se o pedido de parecer for à CADA, a sorte grande sai para os lados das seguradoras; se for à CNPD, a proteção dos direitos dos cidadãos fica mais perto da taluda. Do lado dos beneficiários de um seguro de vida, a questão pode ser vista de outro modo: se o familiar morreu num hospital público (sujeito ao parecer da CADA), receber o prémio de seguro pode tornar-se mais complicado; se morreu no privado, as seguradoras podem nunca rever os elementos que pretendiam. Nenhuma da situações, contudo, exclui o recurso aos tribunais (pelos cidadãos ou pelas companhias de seguros).
Uma análise do Expresso a cerca de uma dúzia de pareceres de cada uma das entidades encontra, de facto, dois padrões. A CADA defere sempre os pedidos e só em alguns casos há um condicionamento na informação a fornecer. Em praticamente todas as posições há uma declaração de voto (contra), de um dos vogais: o representante da CNPD na CADA. Um argumento é que o “contrato de seguro não configura um consentimento do titular dos dados para o acesso à informação clínica relativa à causa do falecimento”; outro é o de que a seguradora não possui qualquer “interesse direto, pessoal e legítimo para aceder à informação de saúde do segurado (a qual podia e devia ter averiguado quando da assinatura do contrato”).
Nos casos apreciados pela CADA, é regra a recusa de muitas das pretensões iniciais. A restrição no acesso passa por libertar apenas os dados clínicos para a “finalidade indicada” (na maioria das vezes “a causa da morte”). Mas em contratos mais recentes, em que a seguradora já acautelou o “consentimento do titular”, é dada luz verde.
Esta disputa entre as duas entidades é um dos pontos arbitrados pela nova lei, que evoca “o princípio da administração aberta”. Os partidos assumiram o compromisso de chegar a um acordo, mas no acesso aos dados de saúde a sintonia parece difícil. Sobretudo à esquerda do PS, há um alinhamento por pontos de vista da CNPD, tanto do PCP como do BE, que quer “limitar o acesso a dados na saúde”, diz o deputado bloquista José Manuel Pureza.
Mas entre PS e PSD (partidos com assento na CADA, pois cada um tem lá um deputado, Luís Montenegro e Pedro Delgado Alves, respetivamente) o entendimento é outro. O social-democrata Carlos Abreu Amorim diz que, perante uma discrepância de duas entidades, “a tarefa do legislador é traçar uma orientação” e assume que a “posição do PSD vai no sentido de aderir, ainda que não totalmente, à orientação da CADA, à qual, aliás, os tribunais administrativos têm dado amplamente razão”. Pedro Delgado Alves bate na mesma tecla. “O regime e as condições de acesso [aos dados de saúde] já estão consagrados na jurisprudência dos tribunais” e “não há necessidade de infletir essa situação”.
Filipa Calvão, presidente da CNPD, diz que “os familiares só têm de provar a morte [do segurado] para receber o prémio de seguro. Em tudo mais o ónus da prova é das seguradoras”. O presidente da CADA, António José Pimpão, afirma que “o quadro legal deve ser mantido, por ser o que melhor defende os interesses dos beneficiários do contrato”. A associação das empresas seguradoras declinou fazer comentários.
Bastante crítico é António Arnaut, o “pai” do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que como advogado conheceu bem o sector segurador: “Há um reduto inexpugnável e sagrado, em que o cidadão tem de ter garantida pelo Estado a privacidade da sua doença”, diz. Comentando o facto de o PS, de que é agora presidente-honorário, defender o entendimento da CADA, dispara: “Faz mal! Não pode ser. O legislador tem de proteger os cidadãos da devassa; não pode estar feito com os interesses mercantis das seguradoras”.
* Qual a intenção do legislador ao permitir que a CADA viole o direito do cidadão à privacidade?
Das seguradoras nós conhecemos o modus operandi: aliciar, facilitar, complicar e recusar.
O diploma está a ser discutido na especialidade (a partir de um projeto do Governo, com propostas de alteração de PSD, PS, BE, CDS e PCP), tendo essa votação sido já adiada várias vezes, a última das quais na quarta-feira. Todavia, face ao calendário da atual sessão legislativa, o texto terá de ser votado na próxima semana.
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A lei não reconhecerá mais direitos às seguradoras. Elas ficarão é com um acesso mais facilitado a dados médicos, pois o canal que lhes tem permitido isso (a CADA, Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos) deverá ver os seus direitos reforçados, segundo a orientação de PSD e PS.
O acesso aos dados de saúde de alguém já falecido nunca se faz por via direta. É preciso um pedido da seguradora ao hospital onde o segurado morreu e/ou foi acompanhado. Noutros casos, os familiares beneficiários do seguro são persuadidos por aquelas empresas a solicitar os elementos.
Com eles, a seguradora pretenderá provar que o segurado omitiu factos ou prestou falsas declarações.
A unidade de saúde não liberta os dados sem o parecer de uma entidade administrativa independente.
Aqui reside a chave da história: não há uma comissão, mas duas (e com orientações quase antagónicas).
Uma é a CADA, que age segundo a lei sobre acesso aos documentos administrativos (e os dados médicos de um indivíduo caem nessa designação se a unidade de saúde for pública). A outra entidade é a Comissão Nacional de Proteção de Dados (CNPD), que funciona ao abrigo da lei de proteção de dados pessoais (e “tutela” tudo o que se passa tanto no público como no privado).
Um retrato cirúrgico da dualidade das duas comissões foi feito em 2011 pelo provedor de Justiça, Alfredo José de Sousa, em exposição ao Parlamento (na qual fez recomendações nunca atendidas): “Se para a CNPD não parece haver qualquer fundamento (...) que permita o fornecimento da documentação clínica aos beneficiários de um seguro de vida para, depois, entregarem essa informação à seguradora; para a CADA o acesso a dados por familiares próximos (cônjuge, filhos) sem o consentimento do segurado para efeitos de ativação do contrato de seguro deve ser admitido”.
Uma dupla bitola
Ou seja: as duas comissões, que podem ter a mesma competência, decidem em sentido diferente. Se o pedido de parecer for à CADA, a sorte grande sai para os lados das seguradoras; se for à CNPD, a proteção dos direitos dos cidadãos fica mais perto da taluda. Do lado dos beneficiários de um seguro de vida, a questão pode ser vista de outro modo: se o familiar morreu num hospital público (sujeito ao parecer da CADA), receber o prémio de seguro pode tornar-se mais complicado; se morreu no privado, as seguradoras podem nunca rever os elementos que pretendiam. Nenhuma da situações, contudo, exclui o recurso aos tribunais (pelos cidadãos ou pelas companhias de seguros).
Uma análise do Expresso a cerca de uma dúzia de pareceres de cada uma das entidades encontra, de facto, dois padrões. A CADA defere sempre os pedidos e só em alguns casos há um condicionamento na informação a fornecer. Em praticamente todas as posições há uma declaração de voto (contra), de um dos vogais: o representante da CNPD na CADA. Um argumento é que o “contrato de seguro não configura um consentimento do titular dos dados para o acesso à informação clínica relativa à causa do falecimento”; outro é o de que a seguradora não possui qualquer “interesse direto, pessoal e legítimo para aceder à informação de saúde do segurado (a qual podia e devia ter averiguado quando da assinatura do contrato”).
Nos casos apreciados pela CADA, é regra a recusa de muitas das pretensões iniciais. A restrição no acesso passa por libertar apenas os dados clínicos para a “finalidade indicada” (na maioria das vezes “a causa da morte”). Mas em contratos mais recentes, em que a seguradora já acautelou o “consentimento do titular”, é dada luz verde.
Esta disputa entre as duas entidades é um dos pontos arbitrados pela nova lei, que evoca “o princípio da administração aberta”. Os partidos assumiram o compromisso de chegar a um acordo, mas no acesso aos dados de saúde a sintonia parece difícil. Sobretudo à esquerda do PS, há um alinhamento por pontos de vista da CNPD, tanto do PCP como do BE, que quer “limitar o acesso a dados na saúde”, diz o deputado bloquista José Manuel Pureza.
Mas entre PS e PSD (partidos com assento na CADA, pois cada um tem lá um deputado, Luís Montenegro e Pedro Delgado Alves, respetivamente) o entendimento é outro. O social-democrata Carlos Abreu Amorim diz que, perante uma discrepância de duas entidades, “a tarefa do legislador é traçar uma orientação” e assume que a “posição do PSD vai no sentido de aderir, ainda que não totalmente, à orientação da CADA, à qual, aliás, os tribunais administrativos têm dado amplamente razão”. Pedro Delgado Alves bate na mesma tecla. “O regime e as condições de acesso [aos dados de saúde] já estão consagrados na jurisprudência dos tribunais” e “não há necessidade de infletir essa situação”.
Filipa Calvão, presidente da CNPD, diz que “os familiares só têm de provar a morte [do segurado] para receber o prémio de seguro. Em tudo mais o ónus da prova é das seguradoras”. O presidente da CADA, António José Pimpão, afirma que “o quadro legal deve ser mantido, por ser o que melhor defende os interesses dos beneficiários do contrato”. A associação das empresas seguradoras declinou fazer comentários.
Bastante crítico é António Arnaut, o “pai” do Serviço Nacional de Saúde (SNS), que como advogado conheceu bem o sector segurador: “Há um reduto inexpugnável e sagrado, em que o cidadão tem de ter garantida pelo Estado a privacidade da sua doença”, diz. Comentando o facto de o PS, de que é agora presidente-honorário, defender o entendimento da CADA, dispara: “Faz mal! Não pode ser. O legislador tem de proteger os cidadãos da devassa; não pode estar feito com os interesses mercantis das seguradoras”.
* Qual a intenção do legislador ao permitir que a CADA viole o direito do cidadão à privacidade?
Das seguradoras nós conhecemos o modus operandi: aliciar, facilitar, complicar e recusar.
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