24/01/2016

MANUELA HASSE

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J. Jesus, a reinar. 
       Disciplina, impunidade e 
responsabilidade social

Arsène Wenger não gosta particularmente de José Mourinho. José Mourinho não gosta particularmente de árbitros. Uns e outros não gostam assim tanto da imprensa, e dos media em geral, particularmente quando os resultados dos jogos não são bons e, em especial, quando os resultados dos jogos, não sendo bons, se vão repetindo jogo após jogo, ou quando os erros de arbitragem complicam a vida dos clubes e, em particular, dos próprios árbitros.

Antes do jogo a favor da UNICEF, organizado por David Beckham algumas semanas antes do Natal e onde participaram antigos jogadores (Paul Scholes, Beckham, entre outros, ou jovens jogadores, Brooklyn, o filho de Beckham, jogador do Fulham) Alex Ferguson, entrevistado antes do jogo, parodiando Mourinho respondia, por duas vezes, e rindo, no comments (sem comentários). Uma semanas antes, Mourinho havia repetido I have nothing to say (não tenho nada a dizer), visivelmente irritado, quando o repórter educadamente lhe perguntava, uma vez mais, as causas e as consequências dos problemas óbvios vividos na equipa. Mesmo antes do Natal, de olhar fixo, a forma seca de van Gaal se livrar do repórter, que insistia na sua saída do Manchester United diante dos maus resultados registados, foi mandar o repórter ir comer as mints pies (pequenas empadas doces), típicas do Natal, e deixá-los trabalhar pois nada do que corria nas manchetes dos jornais, nos media, correspondia àquilo que, de facto, se passava. Na verdade, van Gaal estava furioso, à maneira holandesa. Impressionante, o auto-controlo.

Em Inglaterra, à saída de um jogo, quando Mourinho dirigiu palavras menos elegantes e menos serenas aos árbitros ingleses, a multa aplicada equivalia ao valor de um bom apartamento. Em Portugal, por razões inexplicáveis, existe um código de ética, publicado pela Associação Nacional de Treinadores de Futebol, que não tem grande importância e umas multas, menos do que simbólicas, do Regulamento de Disciplina da Liga Portuguesa de Futebol Profissional (Nuno Sousa, O Público, 8 de Janeiro de 2016) não fazem qualquer diferença. É legítimo perguntar: para que serve um código de ética que não funciona? É que a ética está em cada um de nós e, desde cedo, em todas as circunstâncias da vida, e se o código existe sob a forma escrita, editada por um dos órgãos mais importantes do grupo profissional dos treinadores de futebol, é para vincar a sua existência, isto é, a sua eficácia corrente, prática, um conjunto de normas que regula a vida em comum. Vamos a ver se me faço entender. Não é porque existe um código de ética que a ética existe. O contrário é que vale – o código de ética existe porque existe uma ética na vida, exercida desde o interior de cada um de nós, que entende expressar uma conduta num código que é conhecido e compreendido por todos.

Por outro lado, para que existe um regulamento se esse regulamento não funciona como todos os regulamentos deveriam funcionar? Um regulamento não é um apêndice, não é um artifício, não é uma listagem de condutas que devem ser observadas. É algo que ao indicar, com toda a clareza, as regras de conduta que são reconhecidas por todos os responsáveis de uma determinada área, neste caso da Liga Portuguesa de Futebol Profissional, e aceites por todos como as maneiras de agir que são adoptadas e respeitadas, sanciona com toda a severidade os desvios registados. Não é o caso. Para além dos valores ridículos impostos, sem qualquer graduação consoante a categoria dos clubes em que dirigentes e treinadores, ou outros, intervêm, nada acontece a não ser a total impunidade. A quem serve esta situação? Certamente que não serve o desporto. Obviamente, não serve o público, não serve o país. Para além do mais, é penoso verificar que, também no desporto, a impunidade grassa e a justiça é só para ser aplicada sobre os outros. Em Inglaterra, a justiça dentro e fora do desporto é exemplar e rápida na sua aplicação. Nas últimas semanas, em Portugal, assistiu-se a desafios, de J. Jesus contra Lopetegui, de J. Jesus contra Rui Vitória, do tipo dos pugilistas americanos antes de entrarem no ringue de boxe, o que se passa? No pasa nada! Não deixa de ser estranho.

Não se trata de teoria e muito menos de moralismos. Trata-se da vida comum, em que uns e outros têm responsabilidades, em que há normas e regras e devem ser controladas todas as circunstâncias que podem degenerar, muito facilmente, em confrontos incontroláveis de todos contra todos. Em situações que não se conformam com o respeito devido ao público, à sociedade e ao desporto, a perda de contratos de publicidade é uma das consequências imediatas. Será que nos contratos relativos aos direitos de transmissão dos jogos existem cláusulas relativas a consequências perante actos desrespeitosos perpetrados por qualquer profissional ligado ao desporto? É aí que entra também a responsabilidade das empresas que encontram no campo dos desportos e, em particular, do futebol, um vasto domínio de enriquecimento mas pouco contribuem para a dignificação do espectáculo e, ainda menos, para o nível elevado da conduta da vida pública. O desporto é um meio para que tal seja favorecido, não o contrário. Não deixa de se ganhar dinheiro por isso, pelo contrário – uma vez que participam na qualidade edificante, elevada e exemplar do desporto. Quando afirmamos que o desporto é a sociedade e que todos – dentro do desporto, a todos os níveis, à volta do desporto e fora do desporto – são responsáveis por uma conduta exemplar, isso significa que essa conduta é socialmente consciente. Não ignora que participa e tem repercussões em todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estão ligados ao fenómeno social que é o desporto. Garantem-me, por aí, que é isso que vende. Que o Big Brother é que interessa. Pode ser.

A disciplina é dura para os jogadores. No centro do confronto jogado, diante dos ímpetos mais viris de derrota do adversário, os jogadores, em geral, submetem-se. Sabem que, no mercado de jogadores, jogar bem, dominar a técnica, a tática e a estratégia, não basta. É preciso ser disciplinado, trabalhador, persistente, concentrado, motivado, generoso, observador das regras dentro e fora do campo, que é preciso agradar ao treinador antes de agradar ao público. Para os jogadores, tudo é claro. Quanto a treinadores e a dirigentes parece que as fronteiras entre as boas práticas se esbatem tanto que se invade o domínio do vale tudo. Esse campo, não é o campo do desporto que proporciona actos extraordinários, acções que surpreendem tanto quanto revelam que tudo pode ser de outra maneira.

Vejamos. Tanto o treinador, como o dirigente a todos os níveis, representa a autoridade, distingue-se pelo rigor e a seriedade, a maturidade, suscita a confiança. Que ter autoridade não é ser autoritário. Só é autoritário quem não tem autoridade. A seriedade e o rigor, bem como a maturidade, manifestam-se em todos os momentos através do respeito pelo trabalho e por aqueles com quem se trabalha e para quem se trabalha. Treinadores e dirigentes têm de ser formadores de gente capaz para o desporto e, nessa actividade, para a sociedade entendida como o conjunto das relações que se estabelecem entre uns e outros, entre todos nós. Tem de ser um educador de homens e de mulheres, tem de representar um mentor, um modelo a seguir que inspira a superar os limites a que se está condicionado. Com Alex Ferguson, não havia dúvidas. Ficou registada a reacção perante os excessos publicitários de David Beckham e a falta de concentração no trabalho duro, o seu trabalho. Com Bobby Robson, o acompanhamento de Paul Gascoigne mais do que o de um treinador era a de um verdadeiro pai, vigilante, atento, paciente, até ao fim da vida. Que, no entanto, diante das qualidades e carácter desse jogador, admitiu ter aprendido com ele. Outros, entre os velhos, não abandonam, como Bobby Charlton, personificação dos valores do MU e que assiste, atento e impassível, a todos os jogos do Manchester United, com a sua mulher ao lado, apesar da idade, apesar do frio, apesar dos maus resultados. É uma presença, representa um modelo de dedicação ao clube inglês, à comunidade. André insiste comigo que a comparação não pode ser estabelecida com a sociedade inglesa, o futebol inglês, o desporto inglês, mas, antes, com a Turquia, a Grécia, o Irão!

Convém, no entanto, não esquecer, que o desporto moderno começa em Inglaterra, que é daí que é difundido para todo o mundo, um sinal de civilização, de desenvolvimento. Um avanço, tal como era entendido, que arrasta consigo a transformação das sociedades onde era integrado e onde integrava outras maneiras de fazer, outras formas de pensar e de projectar o mundo, de organizar o tempo e de planear o espaço. Há algum país que não tenha esta ou qualquer outra forma, mais ou menos ocidentalizada, de desporto? Uma vez que todo este movimento ocorre antes do aparecimento da televisão, a globalização do fenómeno foi defendida e propagandeada segundo interesses e valores caros à sociedade. Por isso as regras, por isso os grupos, os clubes, as associações, locais, regionais, nacionais, internacionais, mundiais! A preocupação de educar acompanha todo o desenvolvimento do desporto moderno. Ganham-se milhões, em Inglaterra, com a indústria da educação, da cultura, da produção de todo o tipo de indústrias, a vários níveis – e naturalmente, com o desporto. Não se permitiria que fosse de outro modo, ou não teria sido possível ter chegado ao estado a que chegou hoje se assim não tivesse sido. Quer queiramos ou não, é a referência inicial, referência esta que luta, conscientemente, por ser mantida como tal. Considere-se, nessa perspectiva, a organização dos Jogos Olímpicos de 2012, e a exigência colocada para que não houvessem falhas, em particular entre atletas britânicos, nas questões mais controversas e sensíveis como, por exemplo, o doping.

Quando, em Inglaterra, nos fins do século XIX, a aristocracia britânica, através dos seus jovens adultos do sexo masculino, impõe não só as regras que vigoram nos jogos em si, mas apressa-se a integrar normas e regras de conduta nos jogos, nos clubes, nas associações e nas federações de todos os desportos (os quais dirige), no sentido de marcar bem a diferença entre o jogo e a batalha campal. No essencial, essa pequena diferença – que mudaria tudo - assentava na maneira de se conduzir no jogo, no campo, em especial, e fora do campo, que passou a designar-se fair-play. Algo extremamente britânico que vigora no mundo anglo-saxónico, em geral, e que se expande pelo desporto a todo o mundo. Superior, inteligente, qualidade e refinamento indispensável a quem comanda gente, afirma dessa forma clara que manners make the man, as maneiras fazem o homem, falam por si e são indispensáveis na vida e no desporto, em particular. Ali, a justiça (o futebol e o desporto) funciona, sem exibicionismos, com a eficiência e, tanto quanto possível, a discrição britânicas - numa terra em que a comunicação social é feroz e, além do mais, extremamente bem preparada e responsável. E a vaidade é vista como uma forma de provincianismo.

Os professores sabem que só aprende quem quer. Não falta quem queira aprender entre nós, nas nossas universidades e nas universidades britânicas, em particular. Nós fazemos a nossa parte: estudamos, observamos, transmitimos o conhecimento, investigamos, acompanhamos os terrenos de jogo, os confrontos e as práticas, estamos presentes e abertos ao aprender, ensinamos, avaliamos. Ao mesmo tempo, convidamos uns e outros, atletas, jogadores, treinadores, dirigentes, médicos, fisioterapeutas, empresários, políticos, os diferentes media, para transmitirem as suas experiências, os seus saberes consolidados nos diferentes campos e níveis dos desportos. A universidade faz parte de uma extensa rede de profissionais empenhados em melhorar e valorizar o desporto, os seus agentes, a sociedade através do desporto, a vida em geral, a vida saudável e a vida social através do desporto. Constatamos o seguinte: enquanto a formação e os métodos de treino se multiplicam e apuram, a medicina do desporto aprofunda os seus recursos (de prevenção e de recuperação dos jogadores e das diferentes lesões) e multiplica as áreas que a apoiam, a tecnologia da mais avançada invade cada segmento da actividade, no entanto, as atitudes, inclinações para agir de uma determinada forma, e de pendentes do factor humano e social, em grande parte, as atitudes refreiam a mudança e a transformação mais profunda, contaminam e insistem em formas de comportamento anacrónicas que estão longe de contribuir para a valorização do desporto, de todos nós. Na estrutura social onde o desporto representa um modo de vida, esse é o factor que – uma vez alterado – permitirá a transformação decisiva de tudo. Não há desculpa.

Professora Agregada da Universidade de Lisboa, Faculdade de Motricidade Humana

IN "A BOLA"
20/01/16

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