Pecados da Lusofonia
A escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso é uma das convidadas dos Encontros da Lusofonia, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris. Este é o texto que leu esta quarta-feira.
Conta a minha mãe que em pequena
aprendi quimbundo em vez de português. Conta ainda a minha mãe que eu
não só falava quimbundo como gostava de comer funje e de dançar com as
lavadeiras dos vizinhos. Os meus pais nada sabiam de quimbundo portanto
não sei até que ponto eu me expressei em quimbundo, possivelmente repeti
algumas palavras que ouvi aos filhos das lavadeiras com quem brincava e
pouco mais. Lembro-me no entanto de me aperceber mais tarde de que
havia um conflito entre a nossa língua e as línguas deles.
As
línguas deles nunca eram usadas oficialmente. Nas escolas, nos
hospitais ou nas repartições públicas só se falava português e a maioria
dos colonos ridicularizava os negros por não serem capazes de
pronunciar algumas palavras portuguesas e por não usarem devidamente as
regras gramaticais. Para a maioria dos colonos essa incapacidade era
sinónimo de pouca capacidade intelectual e prova irrefutável de que eles
não saberiam governar-se sozinhos. Chamavam por isso matumbos aos
negros. Os brancos usavam muitas vezes palavras da língua deles para os
insultarem. O uso da língua deles limitava-se praticamente a isso.
Porque só o que é familiar pode ferir profundamente mais.
O facto
de a maioria dos brancos não saber das línguas deles mais do que meia
dúzia de insultos não era visto como sinal de pouca capacidade
intelectual, era apenas sinal de que a língua deles não tinha interesse e
ainda que os brancos desconfiassem que eles conspiravam na língua deles
nem assim perdiam tempo com isso. Os negros e as línguas deles não eram
uma ameaça perante o poder que os brancos e, consequentemente a língua
dos brancos, tinham.
Segundo a wikipédia, a Lusofonia é o conjunto
de algumas identidades culturais existentes em países, regiões, estados
ou cidades falantes da língua portuguesa, como Angola, Brasil, Cabo
Verde, Guiné-Bissau, Macau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe,
Timor-Leste, Goa, Damão e Diu, e também por diversas pessoas e
comunidades em todo o mundo. Alguns teóricos que a estudam advogam que
temos de entender a lusofonia no presente, isto é, sem o peso dos factos
históricos que lhe deram origem.
Creio não ser possível pensar na
lusofonia sem ter em conta os cinco séculos de Império e Portugal como
colonizador. A lusofonia é fruto do Império. Desfizemo-nos do Império
como se fosse uma camisa velha, no dizer do Professor Eduardo Lourenço.
Penso que o mais correcto será dizer que quisemos desfazer-nos do
Império como se fosse uma camisa velha mas que nunca o conseguiremos
fazer porque o Império nos moldou enquanto povo, no passado, tal como a
falta dele nos vai moldando o presente. Talvez por isso seja difícil
fazerem-se ouvir vozes lúcidas sobre o Império. Renegamo-lo ou
exaltamo-lo consoante as nossas perspectivas de vida e credo político,
mas raramente conseguimos abordar com profundidade o que foi
efectivamente o Império e o que dele restou.
Dizia que cresci
testemunhando que uma língua pode ser uma arma muito poderosa e
verifiquei que a língua dos mais fortes ganha. Por ser uma criança, não
me pude aperceber de que a língua portuguesa em Luanda expressava o
domínio de uns e a submissão de outros, e quando muitos anos mais tarde
comecei a pensar no que tinha testemunhado era já ponto assente que o
Império Português nunca deveria ter existido e que uma das grandes
conquistas da Revolução de Abril tinha sido acabar com esse crime da
Pátria.
Poucas vezes terei ouvido que a marca mais visível, ou
melhor, mais audível desse crime é exactamente a língua. A língua
portuguesa é a marca mais permanente da colonização que Portugal
empreendeu. Aquando da descolonização, para os novos estados
independentes era demasiado tarde ou demasiado cedo para escolherem
outra língua que não o português como sua língua oficial. Lembro-me de
algumas canções que os negros cantavam e que tinham palavras portuguesas
pelo meio. Um dia perguntei a razão e explicaram-me que não havia uma
palavra em quimbundo para o que queriam dizer. Uma dessas palavras era
«identidade». Outra dessas palavras era «documento».
IN "PÚBLICO"
21/10/15
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