A vida adulta
Ser adulto passa por percebermos que não somos eternos. Parece fácil, porque está à vista. Os avós desaparecem, alguns cedo na vida.
A minha infância não me interessa nada. Foi vivida como a de qualquer
pessoa foi, é e será vivida. Pensei sobre ela, por vezes, em certas
circunstâncias, lembro-me dela e, sempre que isso acontece, fujo dela a
sete pés. A minha infância foi vivida no seu tempo, melhor, pior, com
alegria, com choros, com birras, com felicidade e tristeza à minha
volta. Lá me mantive à tona de água, apesar de correr o risco de me
afogar.
Não parece, mas é uma metáfora. Uma pessoa nasce e, a partir daí, é
uma incógnita. Em que se tornará o bebé querido quando chegar aos 30,
aos 40? Chegará aos 50 revoltado com os pais por não terem sido o que
gostaria? Acabará a vida arrependido de não ter feito o que queria?
Estas são perguntas de adulto que raramente surgem com serenidade e
limpidez a quem ficou cristalizado numa altura em que a vida não tinha
fim.
Ser adulto passa por percebermos que não somos eternos. Parece fácil,
porque está à vista. Os avós desaparecem, alguns cedo na vida. Mas não é
suficiente para a tomada de consciência mais importante: a de que um
dia seremos nós a envelhecer e a morrer. Não são boas nem más notícias: é
só natural e um sinal de que somos feitos de matéria perecível, que
decairá a seu tempo e extinguir-se-á como tem de ser.
Talvez a morte – igualitária, devo salientar – tenha sido
excessivamente conotada com uma tal ideia de fim que faz com que a vida
seja descrita como “um caminho” que se “percorre” até chegar àquele
ponto. Por isso, podemos dizer de alguém que “é uma tristeza chegar aos
43 anos com rancor ao pai”, mas a verdade é mais complexa e mais difícil
de descrever.
Li há dias um conto curto de Leão Tolstoi intitulado “Depois do
Baile”. Ivan Vassilievitch, “um homem respeitado por todos”, conta o que
lhe aconteceu numa manhã em que toda a sua vida mudou – uma manhã de
epifania em que percebeu que sabemos o que é o bem e o mal não por
estarmos inseridos num meio, mas “por acaso”.
No caso de Ivan Vassilievitch, terá acontecido quando resolveu
meter-se “a direito pelo campo”, num passeio matinal. Estava apaixonado,
e a partir do momento de terrível descoberta tudo mudaria.
O conto é sublime, talvez autobiográfico, uma vez que Tolstoi foi
alguém a quem “aconteceu uma coisa”. Ao mesmo tempo, a história até
chegar ao momento da “mudança” é ambígua. É contada depois da
“revelação”, o que explica os incómodos que precipitariam o
reconhecimento, se se desse o tal acaso. Mas talvez a explicação seja
outra: Ivan Vassilievitch não mudou. Foi sempre assim, e foi essa
inalterabilidade que lhe permitiu precisamente “mudar numa manhã”.
Ninguém muda “numa manhã”, nem o próprio Tolstoi.
Não muda: no melhor dos casos, num momento de crise, interrompe,
conquista – deixa de repetir. No pior dos casos, regride a um tempo em
que não sabia falar. Não se trata de ter uma experiência (mística ou
outra mais prosaica) nem de “percorrer um caminho na vida”, ou
“crescer”, mas de haver uma altura em que decidimos viver de acordo com o
que somos e queremos, sabedores de que a morte chega para todos. Nesse
dia de verdade gloriosa deixamos a infância na infância. Foi o que foi
enquanto durou e ainda bem que acabou.
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17/08715
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