30/05/2015

GUSTAVO PIRES

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Olimpismo e 
Cultura de Participação

 É deveras preocupante que, na República do 25 de Abril, possa ser produzido para o desporto um documento ao estilo “magister dixit” que ousa quebrar uma tradição de participação democrática que vinda do tempo da Monarquia, passou pela 1ª República e raras vezes o regime do Estado Novo ousou quebrar.

O desporto, de alguma maneira, sempre foi um espaço consentido de democracia e participação. Não faltam exemplos a confirmar essa cultura confirmada por jornais e revistas como a “Tiro e Sport” ou “Os Sports Ilustrados” de finais do século XIX princípios do século XX até ao atual desportivo “A Bola” que, de uma maneira geral, no seu momento, sempre foram espaços de livre pensamento no panorama do desporto nacional. Mas também por diversos clubes como a Real Associação Naval e o Real Ginásio Clube Português ou, entre outros, o atual SL e Benfica que, em muitas circunstâncias, pelo exemplo da sua vida associativa, acabaram por ser escolas de aprendizagem democrática uma vez que, muitas vezes, dos poucos sítios onde a democracia podia ser exercida era nos clubes desportivos.

Não há desenvolvimento sem participação das pessoas na medida em que são as necessidades e expectativas das populações que devem orientar os critérios de decisão daqueles a quem a democracia, circunstancialmente, outorga essa competência. Considerando as perspetivas mais intervencionistas de Amartya Sen centradas no princípio da igualdade que, à partida, deve orientar a ação do Estado, bem como as perspetivas mais liberais expressas por John Rawls centradas no princípio da equidade que condiciona a livre iniciativa das pessoas, o envolvimento das populações é condição sine qua non de qualquer processo de desenvolvimento. Quer dizer, não se trata de saber se as populações interessadas vão ser informadas e envolvidas, mas como é que elas vão ser informadas e envolvidas uma vez que, nas sociedades modernas e democráticas, a necessidade de envolver as pessoas nas questões que têm diretamente a ver com a sua vida ou a vida das organizações de que fazem parte, é uma questão adquirida.

Mas um modelo democrático de desenvolvimento em que a participação das pessoas é uma questão central obriga a um sistema de informação consequente, quer dizer, que atinja e mobilize a generalidade dos interessados. Por isso, ao longo dos mais de cento e vinte anos do desporto moderno, a comunicação social tem tido um papel primordial uma vez que os jornalistas, com as suas notícias e as suas prosas, nas mais diversas circunstâncias e em múltiplas ocasiões, têm dado uma dignidade histórica ao desporto sem a qual ele fica reduzido a uma atividade sem sentido social. Aquilo que hoje se conhece do desenvolvimento do desporto português de finais do século XIX princípios do século XX, em grande medida, fica-se a dever, primeiro à intervenção e, depois, à memória preservada pelos jornais. É ela que tem garantido a organização do futuro.

Assim sendo, se existe aspeto que qualquer processo de desenvolvimento deve dispensar é a sua apropriação por alguém que se julga suficientemente iluminado para, de modo próprio e numa dinâmica autocrática, determinar do futuro coletivo de terceiros. Porque, enquanto projeto de mudança e de progresso, o desenvolvimento não dispensa o envolvimento democrático das populações atingidas e interessadas de maneira a que, pelo efeito catalítico provocado pela comunicação social, elas possam tomar nas suas mãos a construção do seu próprio destino.

Em Portugal, de uma maneira geral, o desenvolvimento do desporto sempre esteve envolvido numa cultura de participação em que os procedimentos de ordem democrática têm feito parte do comportamento dos seus promotores. Por exemplo, a fim de se organizar a Missão portuguesa que havia de participar nos Jogos Olímpicos (JO) de Estocolmo (1912), a 30 de Abril de 1912 foi fundado o Comité Olímpico Português o que aconteceu através de uma reunião marcada especificamente para o efeito onde participaram delegados de clubes, jornalistas e membros da Comissão de Desportos da Sociedade Promotora da Educação Física Nacional que funcionava como uma espécie de superestrutura do desporto. Depois, a população portuguesa, sobretudo a de Lisboa, foi envolvida na angariação de fundos a fim de suportar as despesas da Missão portuguesa a Estocolmo. Ainda na 1ª República, foram várias as vezes que o COP foi chamado a participar na organização do desporto nacional. Já na 2ª República, quando em meados dos anos trinta o Estado Novo resolveu intervir no desporto, Oliveira Salazar só o fez depois das figuras públicas mais prestigiadas do desporto nacional o terem solicitado a partir das decisões que decorreram do Primeiro Congresso dos Clubes Desportivos realizado em 1933. E, anos mais tarde, quando arrancaram no País os designados Planos de Fomento, o desporto civil não deixou de ser chamado a participar nos trabalhos do II Plano de Fomento desencadeado em 1963 no âmbito do Ministério da Educação.

Então, foi ordenado pelo Ministro Inocêncio Galvão Telles a elaboração de um Plano de Fomento Gimnodesportivo cujo relator foi Prostes da Fonseca. Da sua equipa faziam parte os Professores de Educação Física Américo José Nunes da Costa; Eduardo Pimentel Trigo; Manuel Meneses de Morais. Mas não só na medida em que, entre entidades públicas e privadas, a título individual ou em representação, intervieram ainda nomes tão diversos do ponto de vista profissional e político como, entre outros, Celestino Marques Pereira; Nelson Mendes; Francisco Nobre Guedes (ao tempo vice-presidente do COP); António Lopes Jonet; José Maria Noronha Feio; José Esteves; José Teotónio Lima; Tibério Antunes; Vasco Pinto Magalhães; ou Armando Rocha, ao tempo, Diretor-geral da Educação Física, Desportos e Saúde Escolar. Note-se que, entre os referidos nomes, podemos ver personalidades tão distantes quanto, do ponto de vista político-ideológico, o foram Nobre Guedes e José Esteves ou, do ponto de vista epistemológico, Celestino Marques Pereira e Nelson Mendes.

A cultura de participação, enquanto predicado de uma conceção democrática de desenvolvimento do desporto que, na tradição do pensamento de Pierre de Coubertin, pontuou no País, foi reforçada e cultivada a partir do 25 de Abril desde logo através de um debate alargado sobre o desenvolvimento do desporto nacional promovido nas páginas do Jornal “A Bola” em que participaram variadas figuras do desporto português. Depois, a elaboração dos chamados Planos de Desenvolvimento (por modalidade desportiva) sob a liderança de Melo de Carvalho colocaram de uma forma empenhada, a sociedade portuguesa a discutir as diversas modalidades desportivas no quadro do desenvolvimento do desporto nacional. O Encontro Nacional do Desporto (ENDO) foi o ponto alto de um processo que havia de mudar a face do desporto na 3ª República.

Mais tarde, ao tempo do Primeiro Governo Constitucional foi nomeada por Sottomayor Cardia, Ministro da Educação, uma comissão encarregada de concretizar a política desportiva do Programa do Governo, da qual faziam parte nomes como José Esteves, Mário Moniz Pereira, Henrique Reis Pinto e Arcelino Mirandela da Costa. A partir de então, produziram-se diversos documentos de enquadramento do desporto nacional e as suas perspetivas de futuro que, salvo uma ou outra exceção, nunca dispensaram uma participação mais ou menos alargada não só dos interessados bem como daqueles a quem os planos se destinavam. Mais recentemente, até Laurentino Dias, com aquele seu jeito que faz lembrar a metáfora do elefante na loja de cristais, quando no XVII Governo Constitucional organizou um Congresso do Desporto, não deixou de garantir uma certa participação democrática fim de que as conclusões do Congresso expressassem um certo sentimento das gentes do desporto.

Por isso, em face daquilo que aconteceu ao longo dos mais de cento e vinte anos de desporto moderno em Portugal, o documento emanado do COP sob o título “Valorizar e Afirmar Socialmente o Desporto: Um Desígnio Nacional” surgiu na sociedade portuguesa de uma forma inadmissível porque à revelia da tradição de uma significativa participação democrática que tem caracterizado a vida desportiva nacional. Quer dizer, nasceu ignorando as mais diversas entidades individuais e coletivas, públicas e privadas, externas e internas, desportivas ou para-desportivas a começar pela própria Comissão de Orientação Estratégica (COE) do COP. Esta, formada, entre outros, pelos presidentes de todas as Federações Desportivas, embora seja “um fórum de discussão e crítica sobre os eixos de orientação estratégica nas questões ligadas ao cumprimento da missão e finalidades do COP”, não foi sequer ouvida em tempo útil.

Em conformidade, são preocupantes as relações que o COP, contra a história, está a estabelecer com a sociedade portuguesa. Primeiro, fecha-se sobre si próprio num Congresso Nacional Olímpico ao estilo de uma “missa cantada” cujos trabalhos, numa desconcertante ambiguidade práxica, se subordinaram ao tema: "Pensar o Olimpismo - Um Testemunho para o Futuro". Depois, produz o documento “Valorizar e Afirmar Socialmente o Desporto: Um Desígnio Nacional” que, à revelia do Movimento Desportivo (MD), numa espécie “evangelização desportiva” dos Senhores Deputados, é apresentado aos grupos parlamentares dos diversos Partidos com assento na Assembleia da República, assim como que a pretender conquistar “na secretaria” um estatuto democrático que não se importou em obter no quadro das relações pessoais e institucionais que deve respeitar no seio das mais diversas forças que interagem no MD.

Professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana

IN "BOLA"
24/05/15


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