Confiança
É a minha última
crónica antes das férias. Por muito que a atualidade nos grite
novidades e temas para reflexão, tudo parece gasto, debatido, espremido.
É, talvez por isso, uma boa altura para olhar para o ano que passou e
tentar perceber se algo mudou, se a comunidade está melhor ou pior.
Existiriam
vários critérios de análise, se estamos mais ricos, se estamos mais
felizes, se estamos com mais esperança no futuro. Escolhi, porém, tentar
perceber se o cimento da comunidade, aquilo que a une, aquilo que a faz
funcionar, melhorou. No fundo, o princípio em que se baseia qualquer
comunidade: confiança. Confiança no outro, confiança nas instituições,
confiança nos mercados, até.
Tony Judt, historiador, no livro Um
Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, afirmava que uma das
razões da actual crise do capitalismo se relacionava com o facto de a
confiança ser imprescindível para a livre concorrência e os mercados
funcionarem, "se não podermos acreditar que os banqueiros atuam
honestamente... ou os reguladores não denunciam os operadores
desonestos, corremos sérios riscos". Não, o inglês não discorria sobre o
caso português, mas dentro dos diversos problemas que o caso Espírito
Santo trouxe, e trará, para a nossa comunidade, a quebra de confiança no
sistema financeiro e na própria regulação não é, de certeza, dos mais
pequenos. Pelo contrário, e nem vale a pena recordar que este caso vem
na sequência de outros problemas no sector financeiro e de negligência
de outras entidades reguladoras, não só financeiras.
Este ano não faltaram estudos a mostrar o descrédito em que caíram as mais relevantes instituições.
Confiamos
cada vez menos nos políticos, nos partidos tradicionais e não
vislumbramos alternativas. Nas últimas eleições, praticamente dois
terços dos possíveis votantes nem se deram ao trabalho de escolher os
seus representantes e os partidos estruturantes da nossa democracia,
juntos, tiveram o pior resultado de sempre.
Temos sérias dúvidas
em relação à Justiça. Há muito que a sabemos lenta - logo, por
definição, injusta -, mas agora suspeitamos dos seus critérios, da sua
capacidade de tratar todos os cidadãos por igual.
Olhamos para os
meios de comunicação social e imaginamos conspirações, interferências
no trabalho jornalístico, agendas nos colunistas. Talvez também por isso
assistimos impávidos e serenos ao seu afundamento sem percebermos o mal
que estamos a causar a nós próprios.
Mas se já todos estes
sinais, que este ano se agravaram muito, são assustadores e corroem a
comunidade, o clima de desconfiança entre os cidadãos - fortemente
incentivado pelo Governo em funções, há que dizê-lo - é talvez o mais
grave. Deixámos que se instalasse uma espécie de guerra entre reformados
e gente no ativo, entre funcionários públicos e privados, entre novos e
velhos.
Como se a comunidade não precisasse de todos, como se cada um de nós não tivesse um papel a desempenhar, como se uns fossem um fardo e os outros os que o têm de carregar. Os possíveis desequilíbrios não são encarados como aspectos a melhorar, mas como guerras a travar.
Como se a comunidade não precisasse de todos, como se cada um de nós não tivesse um papel a desempenhar, como se uns fossem um fardo e os outros os que o têm de carregar. Os possíveis desequilíbrios não são encarados como aspectos a melhorar, mas como guerras a travar.
Sem
confiança nas suas mais diversas instituições, uma comunidade mostra
estar seriamente doente. Mas sem confiança no papel que o outro
desempenha e a consciência da interdependência, uma comunidade não
sobrevive.
Mais do que qualquer outra coisa, temos de recuperar a
confiança em nós, nos outros e nas instituições. E, sim, é uma tarefa de
todos. Tudo o resto parece absurdamente secundário.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
03/08/14
.
Sem comentários:
Enviar um comentário