Banhos gelados
As
doações podem passar a não depender de molhar o próximo. Basta
deslocarmo-nos a uma praia para experimentarmos a sensação de entrar
numa arca frigorífica a céu aberto
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Tenho
sentimentos contraditórios sobre o desafio deste Verão, que consiste em
doar dinheiro a associações que se dedicam ao combate à esclerose
lateral amiotrófica, uma doença neurodegenerativa e incapacitante, ao
mesmo tempo que se experimenta levar com um balde de água fria pela
cabeça abaixo. Se chama a atenção para o problema? Chama, mas não me
interessa assistir a vídeos sucessivos com "celebridades" paralisadas
pelo frio inesperado da água. A repetição é cansativa. Vimos o Jimmy
Falon a despejar um balde de água pela cabeça e achámos agradável, olha
que boa ideia chamar assim a atenção para uma doença avassaladora e
pouco falada. Depois fomos convidados a ver o Cristiano Ronaldo de
cuecas, com pouco risco, a ser "surpreendido" por um alguidar de água
fria. Pronto, está bem. Até que por fim sorrimos de cansaço com os
gritinhos da Jennifer Lopez. Da óptica do espectador, penso que basta.
As doações podem passar a não depender de molhar o próximo. Em
Portugal, temos mesmo a vantagem de o nosso contacto com a temperatura
fria da água ser diário ou quase. Basta deslocar-nos a uma praia (dizem
que este ano até as temperaturas das águas algarvias andam baixas) para
experimentarmos a sensação de estarmos a entrar numa arca frigorífica a
céu aberto. "Sabes que isto faz muito bem às pernas?", dizem os que
consolam pela ofensa. O bem que faz a água gelada à circulação, ao
tecido adiposo formado durante um Inverno de sedentarismo acompanhado
dos mais variados sortidos de bolachas caseiras, à pele lisíssima e
fria... Li em tempos e concordei: quem vive ao ar livre tem a pele mais
quente e é por isso mais mordido por melgas e mosquitos do que quem vive
por norma enfiado em sítios. A pele fria não é atractiva. Isto pode
significar que a probabilidade de uma criatura com hábitos sedentários
ser mordida numa praia portuguesa é reduzida. A água é gelada mas ao
menos não se fica com borbulhas.
Banhos gelados são aqueles que centenas de pessoas tomam em praias
como São Martinho do Porto, Figueira da Foz ou Nazaré. Isso, sim,
parece-me um desafio. Em vez de um balde de água fria pela cabeça
abaixo, basta um mergulho na praia do Norte na Nazaré, aquela que por
estes dias de Verão ilude os distraídos com um mar disfarçado de "flat",
só porque não se manifesta nas ondas de 30 metros surfadas por um homem
que os nazarenos tratam por "Má Cara". Mas uma olhadela de cima para a
praia nos dias de mar aparentemente sossegado é suficiente para nos
assustarmos com a imensidão selvagem do sítio. Ninguém vai para ali, a
não ser turistas inocentes e pessoas desesperadas por escapar à confusão
da praia do Sul. A paisagem é agreste, os acessos são difíceis, e o
mar, lá está, é gelado como nenhuma água em nenhum balde do mundo.
Molhar o pé na praia do Norte podia ser uma variante interessante ao
balde de água fria, mas não, não. Até isso pode ser perigoso. E onde já
se ouviu falar de campanhas de doações que põem em perigo os doadores?
Mas uma coisa é certa. Os banhos gelados estão longe de ser uma novidade
em Portugal.
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23/08714
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