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IN "PÚBLICO"
03/08/14
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Gaza-Sines-Brasil
1-Sete tirinhas de Skype no telefone: “Desculpa
não ter respondido mais cedo, quando não é o problema da electricidade é
o problema da Internet / estamos bem querida / hoje o cessar-fogo
começou às 7 da manhã / vai acabar daqui a uma hora e meia / consegui
trazer água e comida / toda a gente manda amor e respeito.” Ayman Nimer,
de Gaza para Sines, sábado, 26 de Julho, último dia do Festival Músicas
do Mundo.
2-A última vez que me lembro de estar em Sines
foi numa noite deste festival, há uns 15 anos. Antes disso, Sines era o
Al Berto, mas nunca estive lá com ele, nem de dia. E antes ainda era a
Petroquímica, chaminés, aquele cheiro quando se ia de Lisboa para o
Algarve e a viagem demorava um dia, por alturas do 25 de Abril ou ainda
antes de eu entrar para a escola, quando morei um ano em Santiago do
Cacém.
3- Este Verão tive a sorte de ser pára-quedista. O apache
que dirige o festival resolveu incluir na programação duas sessões sobre
livros, uma com o Afonso Cruz, outra comigo, o que fez de mim a única
pessoa com uma pulseira de participante que não tinha uma banda, porque,
além de ter publicado 15 livros (30, contando com as ilustrações), ser
pai de família, um encanto de pessoa, morar no Alentejo e desenhar, o
Afonso compõe, canta, toca guitarra, harmónica, ukelele e actuou em
Sines com a sua banda. Já eu, bem vi a cara do alentejano no bar dos
artistas quando lhe pedi uma água. A pulseira não o enganou por um
segundo: “Atão, tem alguma banda?”
4- O apache que dirige o
festival chama-se, claro, Carlos Seixas. Índio de Viseu e não do Texas,
confidenciou-me o livreiro local ao jantar. Éramos 17 à mesa, incluindo a
banda do Afonso, The Soaked Lamb. Belo nome, disse eu, mas o Afonso diz
que não, porque as pessoas não pensam logo em ensopado de borrego. Já o
apache de Viseu-Texas não estava presente para confirmar as suas
origens, porque basicamente tinha cerca de 30 mil pessoas às costas.
5- Fiquei impressionada com a multidão que lota o festival, sobretudo
os faquires rastafaris que levitam acima dos perigos, numa nuvem de
marijuana. Alguém na Jamaica viu o futuro, e o futuro era Sines: belas
raparigas com testas tatuadas e plantas dos pés de um negro imemorial;
belos rapazes mais leves que todo o volume das rastas, empoleiradas na
nuca, como um polvo de lã. São um povo preferencialmente descalço, com
vocação para transportar a sua própria casa e armá-la em qualquer
passeio. Mas em Julho, em Sines, atravessam e são atravessados pelos
outros povos, fãs de uma noite ou do pacote, viajantes, praieiros,
famílias, betos, até.
6- O livreiro de Sines é o Joaquim
Gonçalves. Foi ele quem me recebeu, para a fala de sábado, acabada de
sair da toca. Achei que ia estar toda a gente na praia, mas havia gente
vinda do Norte e do Sul com perguntas sobre Gaza, sobre o Brasil, uma
Maria muito bonita com o contacto de um português fazedor de barcos em
Pernambuco, que também anda descalço, até já andou nu. Sines tem uma
costela pernambucana, quando o apache Seixas me ligou a primeira vez
falou logo do Cordel do Fogo Encantado, banda que já esteve no festival e
sobre a qual eu escrevera por causa do meu vizinho agricultor que lê
Agamben. Ter costelas assim pelo mundo, Irão em palco numa noite, Israel
na outra, depois dançar com o Benim, é política a longo prazo, porque o
esquisito é sobretudo esquisito ao longe. Atalhando, quando, depois da
fala eu e o Joaquim conseguimos enfim chegar ao castelo, já os Soaked
Lamb iam a meio da festa e aquela voz de bluesman era mesmo o Afonso
Cruz: chapéu. Escrever é OK, mas todos queremos é ser o Lou Reed.
7-
Entre os Soaked Lamb e o jantar dos 17, o Joaquim levou-me à livraria
dele, com a cara de Al Berto à entrada, uma cara de rapaz no Verão, do
tempo em que Sines era uma aldeia e se ia à boleia pela Europa. Além das
novidades, a livraria tem fundos bastantes para fazer acontecer a feira
do livro na capela quinhentista junto ao castelo, onde acabámos por
encontrar o Luís Henriques, da Homem do Saco, que veio compor cartazes
artesanais, como as edições que eles continuam a fazer em Lisboa. Um
cartaz, uma banda, peças únicas. Joaquim conheceu Luís, Luís conheceu
Joaquim, ponto para a guerrilha. Estamos a falar do livreiro que ganhou o
prémio de melhor atendimento em todo o país e durante o festival atende
neste altar sacro-profano, livros, discos e talha dourada.
8- Domingo de manhã, havia tendas em qualquer canto de Sines. Uns
burgueses, comparados com aqueles que ainda não tinham dormido, ou
simplesmente dormiam no passeio. Já em direcção a Alcácer, bem antes de
aparecerem cegonhas e arrozais, alguém deixara cair o enxoval na
estrada, panelas, pratos. Bom momento para aquele samba de Nelson
Cavaquinho que sempre me deixa a saudade aguda de certo sábado no Rio de
Janeiro, quando passavam 100 anos sobre o nascimento de Nelson
Cavaquinho, e com a sua elegante voz de baixo o cavaquinista Gabriel
Cavalcante lançou: “Tire o seu sorriso do caminho / que eu quero passar com a minha dor…”
Foram estes versos que a banda de Afonso Cruz cantou ao poente no
castelo, coincidindo com as sete tirinhas vindas de Gaza e a melancolia
de quem ali em Sines pesava o que queria e não queria, luxo maior de
estarmos vivos.
IN "PÚBLICO"
03/08/14
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