02/02/2014

MANUEL SÉRGIO

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Manuel Sérgio (foto ASF)

Aurélio Pereira 
ou um projeto antropológico

Sinto como um privilégio conviver e merecer a amizade de Aurélio Pereira, o grande mentor e criador da formação dos jovens futebolistas do Sporting Clube de Portugal (SCP). A atividade que escolheu e a que com tamanha exemplaridade se devotou – segundo a opinião dos entendidos, não tem par, em competência e honestidade, no mundo todo.

Do seu trabalho “nasceram” jogadores como Cristiano Ronaldo, como Luís Figo, como Rui Patrício, como Ricardo Quaresma, como Simão Sabrosa, como André Martins, como João Moutinho, como Nani, como Semedo, como Mané, como Podence e tantos, tantíssimos mais. Para dar voz à admiração que nutro pelo meu Amigo Aurélio, não tenho receio em acrescentar: é um autêntico milagre o que ele tem realizado, entre os jovens futebolistas “leoninos”. Recebi, há uma semana atrás, saía eu de uma gripe traumatizadora, um telefonema do Jaime Cancella de Abreu: “O Aurélio Pereira propõe-nos um almoço, na quinta-feira da próxima semana, em Alcochete. O que acha?”. O que havia de achar, que me considero discípulo da eficácia, da lucidez, da firmeza, da seriedade do Aurélio Pereira? Respondi-lhe, imediatamente: “Estou à vossa disposição e agradeço-vos que permitam a minha presença”. Farto estava eu de saber que muito aprenderia com a irrequietude do Cancella de Abreu, o meu editor preferido, e a sabedoria do atual coordenador do recrutamento da formação sportinguista. Houvesse mais “Aurélios”, no futebol português, e seriam também mais os “Ronaldos” e os “Figos”.

Trilhando caminhos em que, antes dele, raros se afoitavam, levava comigo um arsenal de perguntas para, por meio delas, visionar o paradigma norteador do trabalho do Aurélio Pereira. Mas, antes que eu pudesse questioná-lo, antes de conversa mais folgada, ele adiantou-se: “Quero que você saiba, Manuel Sérgio, que só há dois anos que estudo as suas ideias, principalmente depois da leitura dos seus livros Filosofia do Futebol e As Lições do Prof. Manuel Sérgio”. E continuou: “E quero dizer-lhe também que as suas ideias, que não conhecia até 2012, nada têm a ver com o trabalho que, até àquela data, fiz no Sporting. Mas, hoje, que julgo conhecê-las, nas suas linhas gerais, sinto-me mais seguro naquilo que faço e vou até ao ponto de pensar que o meu trabalho tem fundamentação científica”.

Como há trinta anos me sucedera com José Maria Pedroto, outro desbravador da floresta cerrada da vasta problemática do futebol, uma grande emoção cresceu em mim, irrefreável, e a custo fiz uma súmula do que pretendia dizer-lhe: “Querido Amigo, hoje, dia 23 de Janeiro de 2014, é um dos dias mais felizes da minha vida. E porquê? Porque o Aurélio Pereira me diz que, também para ele, ajudar à formação de jogadores de futebol é, em primeiro lugar, medir as suas potencialidades físicas e técnicas e depois ajudar à formação de valores inegociáveis, nos jovens que chegam ao Sporting, entre os 6 e os 18 anos. No campeão do futuro, ou há também valores humanos, ou não há desporto. De facto, o futebol nasce de homens, homens só e nada mais do que homens”. Será esta a grande revolução que se processou, no futebol de formação do Sporting?

Atravessa hoje, o Sporting um momento de arrebatada e arrebatadora viragem, sob a liderança do Dr. Bruno de Carvalho. Aurélio Pereira, lucidamente recetivo ao trabalho do seu presidente, não corre atrás das fáceis e berrantes verdades dos comentadores, com ideias confortavelmente definitivas. Pelo contrário, numa atmosfera desanuviada de constrangimentos, pois que o Sporting o respeita e o estima, o coordenador do recrutamento dos jovens leoninos não desconhece o “primado teórico do erro” e critica e critica-se, já que todo o processo científico é um processo inacabado de verdades provisórias.

Nesta perspetiva, uma evidência indiscutível ou é um engano ou uma patetice. Não foram, por isso, palavras lançadas ao vento as que escutei ao Aurélio Pereira, naquele almoço inesquecível: “O futebol estuda-se, em Portugal, divorciado da história das ideias, da vida social, económica e política. Por isso, ao contrário do que o Manuel Sérgio ensina, há muitos anos, para a grande maioria dos nossos agentes do futebol o futebol não passa de futebol. Ora, para nós, na formação do Sporting, o nosso trabalho tem de mergulhar numa problemática muito mais vasta do que a problemática típica do futebol. São as saudades da família; é o rendimento escolar; é uma formação para os valores, que vai muito para além da educação formal; é o respeito pelas tradições do clube que os escolheu – enfim, o futebol é mais do que futebol”. E, sublinhando bem o que dizia: “Nós, na formação do Sporting, temos a certeza que, se não formarmos homens, o jogador não nos interessa”.

Quando o jovem chega ao Sporting, se bem entendi o meu querido Amigo, Aurélio Pereira, é o seu jeito para o futebol, são os fatores hereditários, que imediatamente se procuram. “Mas é, através de um projeto antropológico, que desenvolvemos as qualidades do futebolista”. E, simpático, olhos-nos-olhos, confidenciou-me: “Manuel Sérgio, sem eu mesmo o saber, era a sua teoria que eu seguia”. Rendido, de lágrimas nos olhos, observei: “E é a sua prática, porque a prática é o critério da verdade, que vem dizer-me ser bem possível que eu esteja, teoricamente, no caminho certo. Querido Amigo, considere-me seu discípulo”.

A timidez e a modéstia de Aurélio Pereira, o seu sportinguismo convicto, não lhe ofuscavam a consciência da importância da suas (nossas) ideias. Por isso, as suas palavras não pareciam, nem embaraçadas, nem inseguras. O projeto antropológico do seu trabalho passara a ter paradigma científico. Entardecia. Lá fora. Amanhecia. Dentro de nós (o Aurélio Pereira, o Cancella de Abreu e eu próprio). Antes de entrar no carro, que me conduziria a Lisboa, o Aurélio Pereira ainda me deixou um aviso: “Gostaria de ler a sua tese de doutoramento”. Naquele almoço, senti a falta do José Maria Pedroto – um homem que viveu antes do seu tempo!


IN "A BOLA"
28/01/14


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