Tristes elites
O que pode levar uma elite política a um tão grande divórcio com o
seu próprio país e à guerra aberta contra a comunidade a que pertence é
uma interrogação permanente.
Depois do feriado nacional do dia da reunificação, a 3 de Outubro,
sucede-se uma pausa na calendário escolar de algumas regiões da
federação alemã que levou muitas famílias a rumar ao Sul da Europa para
umas curtas férias (noutras regiões esta semana de pausa tem lugar no
final de Outubro). Entre feriados nacionais e regionais mais as férias
de Natal, Carnaval e Páscoa, os alemães têm vários momentos de descanso
ao logo do ano que não deixam de aproveitar, como acontece em qualquer
país.
Excepto em Portugal. Aqui, o
Governo ficou muito encabulado por alguns portugueses terem escolhido a
praia, para descansar e aproveitar o bom tempo de Junho, na altura em
que a troika chegava a Lisboa, pela primeira vez, e decidiu
então eliminar feriados para poder dizer aos seus mandantes: “Vejam como
nós pomos na ordem este bando de calaceiros!”... E não teve pejo em
assumir publicamente que a medida era necessária por uma questão de
imagem. Não seria certamente por questões de produtividade, porque uma
tal medida só pode ser desmotivadora e geradora de insatisfação no
trabalho (como, aliás, mostram inquéritos recentes sobre a satisfação no
trabalho), pois como a história das relações do trabalho mostrou, não é
o trabalho como castigo, sujeito à repressão de capatazes cruéis, que
contribui para o aumento da produtividade.
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O que pode levar uma
elite política a um tão grande divórcio com o seu próprio país e à
guerra aberta contra a comunidade a que pertence é uma interrogação
permanente, perante o estilo de governação a que estamos sujeitos. Cada
medida que é anunciada faz-se acompanhar de um argumentário mais
violento, inventa um novo bode expiatório e avança com mais um
preconceito, numa espiral de ódio e desprezo pelas pessoas, desrespeito
pelas instituições e irritação com a democracia. É a indolência dos que
recebem rendimento mínimo, a riqueza dos aposentados da função pública, o
abuso das viúvas que acumulam pensões, a preguiça dos desempregados.
Mas
se as medidas se inscrevem coerentemente no anátema lançado sobre a
população de que vivemos acima das nossas possibilidades, que temos que
empobrecer, e num programa político concebido para a exportação dos
recursos humanos mais bem qualificados do país, para a destruição da
escola pública e das instituições científicas de excelência, o
desmantelamento do Estado social, a suspensão da democracia e do Estado
de direito, então para quê tal necessidade de acrescentar juízos morais?
Também não seria necessário estar sempre a desculpar-se com os outros: o anterior Governo, os credores, os mercados e a troika,
essas entidades externas maquiavélicas que os obrigam a fazer tais
maldades às pessoas. A subserviência e o desprezo pelo país não são
exigência de ninguém, mas passam a fazer parte da equação quando os
próprios dirigentes as interiorizam e transmitem na sua relação com o
resto do mundo, de tal modo que desde o presidente da Comissão Europeia à
senhora Christine Lagarde, todos se sentem no direito de dar ordens ao
Tribunal Constitucional de Portugal (comentários que nunca seriam
dirigidos às mesmas instâncias de outros países e muito menos ao
Tribunal de Karlsruhe, apesar de tomar decisões referentes à Europa) e
tratar a democracia portuguesa como uma excepção.
Ninguém obriga o
próprio Governo a pressionar e atacar os órgãos de soberania, sempre de
modo a que a sua voz seja bem ouvida no exterior, como aconteceu ainda
no tempo do PEC IV. Ninguém o obriga a alimentar o ódio contra os
pobres, os idosos, os reformados, os desempregados e os funcionários
públicos. Não, ninguém obriga a nada disso, mas isso dá jeito quando se
decide consciente e deliberadamente transformar esses grupos, e só
esses, nos alvos dos tais credores, os eleitos para a resolução do
défice, as vítimas inocentes de erros cometidos por outros indivíduos e
instituições cujos interesses o Governo defende e protege, ao contrário
do que jurou na sua tomada de posse.
Psicóloga social e professora catedrática do ISCTE
IN "PÚBLICO"
15/10/13
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