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IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
05/09/13
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Associação de Mulheres
contra a Violência
Não é o caso desta campanha, com muita qualidade,
que não se destina tanto às vítimas da violência doméstica, mas
primeiramente ao público que é convidado a apoiar a AMCV com donativos. A
imagem do "primeiro beijo" atinge toda a gente, permitindo a
identificação com a terrível hipótese da narrativa do "primeiro murro".
A actual campanha da Associação de
Mulheres contra a Violência faz mais do que recordar que "no último ano
morreram 37 mulheres vítimas de violência doméstica". Cria um ângulo de
abordagem que obriga o observador a imaginar uma narrativa terrível em
que ele mesmo participa.
Na imagem do anúncio de imprensa e internet, um casal jovem
beija-se e abraça-se junto ao automóvel; o fundo está desfocado, como
se não houvesse mais nada para eles senão aquele momento feliz. Eles, o
carro e o fundo estão salpicados de chuva, acentuando a libertação
instantânea do mundo e a concentração no carpe diem, ao mesmo tempo que o
símbolo da água sugere o erotismo e o sexo.
Mas o
slogan, por cima do casal, conta o resto da estória, confrontando a
realidade visível e a realidade escondida depois, portas adentro: "O
primeiro murro". É como um título de filme, remetendo por
intertextualidade para o filme "O Primeiro Beijo", a frase feita que se
repete infinitamente nos media, na ficção, na vida das pessoas. O
grafismo de "o primeiro murro", com corações e curvas angélicas,
acrescenta ironia ao contraste com a imagem. Portanto, vê-se o primeiro
beijo e lê-se o primeiro murro. A frase seguinte reitera e avança mais
uma pista para a narrativa invisível: "Esquecer a primeira agressão é
tão difícil como esquecer o primeiro beijo."
A
versão em vídeo do reclame é mais explícita, ou compreensível, mostrando
o primeiro beijo enquanto o som dá a ouvir uma, ou a primeira agressão.
Em qualquer caso, a construção da narrativa fica a cargo da
observadora: a relação começou como qualquer outra, lírica, amorosa,
intensa; depois, dentro de casa, veio o primeiro murro e instalou-se a
violência do homem sobre a mulher, que esta vai sofrendo em silêncio; se
o primeiro murro não se esquece, vêm depois o segundo, o terceiro, o
quarto, como se fosse a normalidade da relação. Por isso o texto
acrescenta que "muitas mais [mulheres] continuam ao lado dos
agressores", fornece os contactos e pede donativos para apoio à "defesa
dos direitos da mulheres".
Quer no felicíssimo
título, quer na apresentação paralela dos dois momentos da narrativa —
primeiro o amor, depois a violência — os anúncios da AMCV conseguem
ainda estar próximo do que se imagina a realidade da situação retratada,
dado que a violência só parece explicável pela existência de um momento
anterior de amizade, amor e erotismo. Surgindo na sequência desse
período, a violência, tantas vezes coexistindo com situações de
relacionamento pacífico, mas também de coacção psicológica, torna-se um
inferno de que, imagina-se, é difícil as vítimas saírem, como fica
igualmente implícito na narrativa desta campanha.
É
fácil sentirmos empatia, não só com as vítimas, como também com os
anúncios de instâncias de solidariedade. Em dois júris de prémios de
publicidade em que participei, os responsáveis pelo certame pediram aos
jurados para apreciarem este tipo de anúncios apenas pelas suas
qualidades comunicativas, sem se deixarem levar pela bondade da causa (o
que mesmo assim aconteceu). E, na verdade, nem sempre acontece a
publicidade de causas ter qualidade comunicativa, como nalguns anúncios
que já aqui analisei.
Não é o caso desta campanha,
com muita qualidade, que não se destina tanto às vítimas da violência
doméstica, mas primeiramente ao público que é convidado a apoiar a AMCV
com donativos. A imagem do "primeiro beijo" atinge toda a gente,
permitindo a identificação com a terrível hipótese da narrativa do
"primeiro murro". O observador e a observadora, que recordarão o seu
primeiro beijo, facilmente se colocam na posição do agressor ou da
vítima: e se fosse eu?
Estão de parabéns os publicitários e os media que oferecem o seu espaço para a divulgação destes anúncios.
IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
05/09/13
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