24/08/2013

LUÍS JANUÁRIO

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Eva na 
praia dos Secos

Embora continue a não se passar nada, quatro dias de praia concentram hoje o aborrecimento extenuante de um mês de então. Há é pouca gente para dar por isso, como disse, do binómio de Newton, Álvaro de Campos

Estou na praia há quatro dias. Na praia, esta clausura, este retiro de silêncio. De acordo com as unidades de tempo dos anos 60 do último século, estes quatro dias agora equivalem a um mês de praia de então. Ao mês inteiro. Agosto, claro. A temporada. Nos primeiros dias não se ia à praia. Brincava-se no parque, debaixo das árvores centenárias, à sombra do misterioso palacete encerrado. Embora ainda não houvesse o cancro da pele, não se podia estar na praia da uma da tarde até depois do lanche. A menos que uma espanhola mais divertida nos cooptasse para um grupo, o mês decorria sem surpresas, das barracas dos camponeses às filas de chapéus, onde as mulheres da classe média ensaiavam uns biquínis remotamente ousados. Entre o jogo do prego e as corridas das cadeiras, ou dos sacos, escoavam, infindáveis, os minutos. Nunca mais chegava a hora do banho, esse choque térmico redentor, com um banheiro apitando e outro remando sem parar, mantendo o bote branco da capitania na zona limite dos trinta metros, a partir da qual era mar alto.
Embora continue a não se passar nada, quatro dias de praia concentram hoje o aborrecimento extenuante de um mês de então. Há é pouca gente para dar por isso, como disse, do binómio de Newton, Álvaro de Campos.
O mar parece não ter ondas nem marés. É um mar que lembra uma fotografia do mar. Como nos lagos e nas piscinas de Miami, as pessoas, transformadas por raros dias em veraneantes, entram no mar, esticando o pescoço e o queixo, olhando para o Indefinido, enormes e imóveis como as figuras da “Grande Jatte” de Georges Seurat, submersas, o volante dentro delas quase parado.
Conheço-as. As crianças que chegaram do Norte do país, com a pele muito branca mordida pelos insectos, estão a ser educadas por pais com a calvície precoce dos almoços de trabalho e do excesso de reuniões. Os pais divorciados são os seres mais tristes deste mundo. Os filhos mais velhos lêem Dan Brown em inglês e estão zangados. Os mais novos querem brincar, a mais inesperada das actividades, cheia de perigo, ruído, exigências físicas e expectativas de participação familiar. E eles, os pais divorciados, suspiram pelo fim daqueles dias inúteis, para regressarem aos almoços de trabalho e às reuniões.
À minha frente, o homem que parece um antigo guarda-redes do Benfica, e deve ser um antigo guarda-redes do Benfica, fala com a mulher das empresas que fecharam e da audiência inevitável com o director de finanças. E ela, que tem o corpo fantástico das mulheres dos antigos guarda-redes do Benfica, dá-lhe instruções detalhadas, repetidas, aconselhando-o sempre a “não deixar passar o Verão”.
“Pai, porque é que nós viemos no sábado e voltamos no sábado?”
“Porque foi assim que a mãe escolheu.”
O rapazinho, que “é muito absorvente”, “exige muita atenção”, está fascinado pelos sábados, o dia em que tudo começa e acaba, para onde o tempo escorre entre as suas mãos pequeninas. Repete a pergunta. E o pai responde e parece ficar ainda mais triste. Olhar para ele, mesmo obliquamente, é doloroso. Desvio os olhos, com medo que ele rompa em soluços, mas fui tocado pelo mal que o atormenta, a tristeza dos pais divorciados, que ainda não “refizeram a vida”, ou, sendo homens, estão agora casados com mulheres como a Julie Delpy de “Antes da Meia Noite”, de lábios franzidos, decaimento do desejo conjugal e retórica culpabilizante, parecendo estar sempre a dizer “tu-nem-ao-menos”, “ainda se”, “nem-te-lembraste-de”, “agora-tu-já-não”.
Passa a garota que vende bolas de Berlim.
“Olha a bola. A bolinha de Berlim.”
Ela diz “a bola” com inesperada velocidade e em tom decrescente, como se pretendesse assustar as crianças ou criar uma expectativa para o que vem a seguir. E depois de uma pausa entoa “...a bolinha de Beeerliiiim”.
 Chama-se Eva. As bolas são de creme. Sem creme. E chocolate. Este é o seu segundo ano de praia. O ano passado ela dizia apenas “Olha a bola!” Depois notou que as crianças gostavam quando cantava. Começa às dez, quando a carga é de cerca de 12 quilos, na caixa de esferovite oferecida pelo supermercado da zona. Almoça às duas, a correia já a esfolar os ombros assimétricos. E acaba às sete. Vende-se bem ao fim da tarde, cada bolinha com um guardanapo e um saco de plástico. Faz o percurso entre a praia do Presidente e a praia dos Secos. Tem concorrência poderosa. Uma mulher que optou pelo pregão informativo, “Creme. Sem creme. Chó-có-lá”; o rapaz da “Bola, bó-li-ná”; o candongueiro que toca “Für Elise” no telemóvel amplificado; o bando dos vendedores de toalhas de praia; e ainda outro gigante triste, o génio de Aladino, vindo directamente da lamparina, de repente à nossa frente com um tabuleiro de óculos de sol, não vendendo nada e não parecendo mostrar o menor interesse em vender, como se o seu objectivo fosse apenas aparecer e desaparecer em silêncio, mostrando os óculos no tabuleiro e a sua infinita melancolia.
Passa Eva. Tem uma cara linda de menina, o corpo mal se percebe entre a carga, mas é magrinha até às ancas e depois as pernas vão-se enterrando, à medida que avança. E é como se agora, um dia a meio deste segundo ano, justamente quando o seu canto começou a ser entoado pelas crianças, os pés se tivessem desfeito na areia da praia dos Secos.

“O Mar”, John Banville, ed . ASA, 2006

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19/08/13

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