Portugal visto da Grécia
em ondas de choque
Em 1997, para os gregos, Portugal era ainda um país por descobrir. Valham-nos o fado, a revolução dos cravos, a poesia e o futebol! Mas havia já a ideia de que era um país bem comportado no espaço europeu, onde os governantes são empreendedores e os habitantes respeitam a fila para entrar no autocarro.
Na Grécia uma coisa parece clara, pois se nem
os portugueses escapam, como será possível libertar-se das algemas
dentro deste tanque que gera indefinidamente dívidas crescentes?
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O meu contacto com a vida económica e política de Portugal era
bastante mais intenso nos primeiros anos, depois fui perdendo a
assiduidade informativa. Primeiro deixei de conseguir receber o sinal de
satélite da RTP Internacional e depois foi a aplicação do acordo
ortográfico que confesso me perturba durante a leitura. A verdade é que,
quando a visão da actualidade de um país é delimitada pela projecção
filtrada dos media, o resultado pode ser gradualmente o desfocar da
concepção que temos da pátria até ao ponto de não ser possível
identificar a diferença entre a mistificação e a realidade do passado. E
então torna-se muito difícil entender o presente. Para usar um conceito
de Naomi Klein no seu livro A Doutrina do Choque: a Ascenção do
Capitalismo de Desastre (2007) a visão que tenho de Portugal tem sido
modelada por uma série de "choques" dos quais distingo quatro.
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O primeiro em 1998 com os resultados no Referendo sobre a interrupção
voluntária da gravidez. Mas então em Portugal, no espaço familiar, na
escola ou na sociedade em geral, as mulheres não têm direito a revelar e
impôr as suas opiniões? Senão pela conquista do direito ao voto
feminino em 1931, pelo menos com base na Constituição da República
Portuguesa de 1976. Pois se há mulheres juízes, se há mulheres deputadas
e inclusivamente uma mulher que havia ocupado o cargo de
primeiro-ministro, porque negar-lhes a possibilidade de decidir sobre
algo tão pessoal?
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O factor económico é crucial no planeamento familiar. Dever moral da
sociedade que defende a vida deveria ser incentivar a educação sexual
adequadamente leccionada como matéria disciplinar nas escolas, dada a
necessidade de informação dos jovens, em vez de criminalizar os seus
cidadãos. Claro que a questão do alargamento emergente da informação
sobre a sexualidade, dada a elevada taxa de gravidez de adolescentes,
já existia quando frequentava o ensino secundário. E pergunto-me: que
anda a fazer a minha geração hoje que são pais enquanto o número de
adolescentes grávidas por ano continua a ser tão notável quanto a taxa
de abandono escolar?
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Em 2003, o segundo choque, a organização da Cimeira sobre o
desarmamento do Iraque na Base das Lages nos Açores. Mas Portugal não
era um país pacifista que havia repugnado de forma definitiva qualquer
forma de política colonial? Parecia-me claro que a iniciativa de
concretização de uma reunião com um objectivo tão definido em território
nacional ultrapassava a responsabilidade de um mero governo no seu
segundo ano de existência. Talvez a minha ingenuidade relacionada com as
oportunidades dos mercados em periodo de guerra não me permita alcançar
as dimensões desta originalidade, por parte do então primeiro-ministro,
que seguramente deve ter contribuído bastante para o reconhecimento do
desempenho de Portugal em casos de política externa, a tal ponto que um
nome fosse óbvio para um lugar na presidência da Comissão Europeia.
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Em 2005, o novo primeiro-ministro parecia trazer um bom presságio
dado o seu nome de carácter mais filosófico. Mas não se deve julgar um
livro pela capa e naquele Verão tão quente, ainda no primeiro semestre
do seu mandato, fiquei chocada com a falta de sensibilidade humana do
mais alto cargo do governo enquanto o país estava a ser flagelado por
incêndio atrás de incêndio. Durante esses dias em que extensões enormes
de floresta nacional, bens pessoais e vidas se perderam, por muito que
nos garantam que a situação está sob controle, a partir do momento em
que se é nomeado primeiro-ministro de um país, deve estar-se disponível
para a sua população, dedicando um mínimo de atenção, senão pessoalmente
pelo menos através dos meios audiovisuais.
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Em 2011, o grande choque, a intervenção do FMI no país. Onde estava a
minha nação heróica pronta a assumir qualquer sacrifício para evitar a
perda da soberania nacional? Porque foi encarada pelos seus governantes
como incapaz de decidir por referendo? Que diferença em comparação com a
frontalidade e a maturidade do povo islandês... Mas para isso é
necessário estar informado e isso não significa limitar-se a consumir
aquilo que os media tradicionais projectam, atordoado pela fobia de uma
futura catástrofe. É importante inter-relacionar-se para estar informado
sobre a existência no momento presente e é desta forma que o medo do
amanhã se torna ridículo porque a percepção das coisas se torna mais
definida.
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Depois disto, o caso de Miguel Relvas, em 2013, não foi um choque mas
uma apagada exclamação. Parece-me óbvio não ser uma licenciatura
comprovativo de mérito pessoal mas a falta de ética é uma prova de
ausência de moral e, nestes casos, o indivíduo em questão não deveria
estar habilitado a candidatar-se para servir o bem comum porque creio
que o objectivo de qualquer funcionário público é contribuir para o
alcance da justiça social. E no entanto, ocupa actualmente um novo
cargo, mesmo sem remuneração, mas um cargo de carácter cultural com
projecção internacional.
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É claro que têm havido outros casos, como a nacionalização do BPN, as
alegadas denúncias de tráfico de armas pela direcção da Universidade
Lusófona e o abuso sexual de menores no interior da Casa Pia, que se
tornaram igualmente chocantes para mim, sobretudo devido à indolência
dos media tradicionais, tendo em conta o aprofundamento que deveria ter
sido dedicado à investigação de temas que são um ataque directo à
estabilidade nacional. Em vez disso, aquilo que me surpreende detectar
no discurso mediatico é a necessidade de revelação do bode expiatório,
"a culpa é da Grécia", repetida obsessivamente como mantra pelas bocas
políticas, talvez na esperança de que deste modo se concretize ou
talvez, qual Medusa, para evitar encarar a aterradora verdade no escudo.
José Saramago, no seu extraordinário romance Ensaio sobre a lucidez, já
escrevera "Aqui, cada um com o seu desgosto e todos com a mesma pena".
* Doutorada em Comunicação Social, professora
universitária nas áreas de Estética dos Media e Semiologia da Imagem na
Universidade Jónica, no Departamento de Artes Audiovisuais. Vive na ilha
de Corfu, está na Grécia há 16 anos.
IN "DIÁRIO ECONÓMICO"
14/08/13
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