As origens
da nacionalidade
Abominar a
esquerda não significa conviver com a direita. Sobretudo em Portugal,
onde a dita parece vastamente povoada por tontos e tontas capazes de
embaraçar um anticomunista primário, que é como convém que os
anticomunistas sejam. Recentemente, tivemos as confissões de uma tal
Cristina Espírito Santo, a filha de um banqueiro que, segundo
declarações ao Expresso, gosta de passar férias na herdade da família
porque isso a convence de que está, cito, a "brincar aos pobrezinhos".
Por outro lado, há um par de meses, a Sábado revelou que a presidente da
Assembleia da República mandou apagar da Wikipédia a referência à
profissão do pai (alfaiate). E, em larga medida, é isto a nossa direita:
gente orgulhosa do berço dourado e gente envergonhada das origens
humildes. No fundo, trata-se de uma contrapartida adequada aos
preconceitos da esquerda, que tanto odeia os que nasceram ricos quanto
os que se fizeram ricos (o velho derby "fascistas" versus "arrivistas").
E trata-se de um retrato fiel do país que somos.
Nos lugares
com alguma tradição liberal, a ascensão é que merece louvores. Nos
Estados Unidos, por exemplo, não existe percurso mais grandioso do que o
dos presidentes que vieram ao mundo na proverbial (e às vezes algo
mitificada) barraca de madeira. Logo a seguir, vêm os empresários que a
partir da miséria ou no mínimo de fracas perspectivas constituíram
fortuna. A subida na escala social é não só sintoma de liberdade
colectiva: a sinceridade dos seus protagonistas é também sintoma de
inteligência individual. Afinal, que mérito sobra à criatura que deve
exclusivamente a prosperidade aos antepassados? E que discernimento se
atribui à que finge a prosperidade dos mesmos? Recentemente, um
jornalista indígena alinhavou um longo obituário de uma familiar, que
segundo o texto o iniciara nos rudimentos do Antigo Egipto e na história
das religiões. Na verdade, a senhora era vendedora de peixe e, ao que
sei, praticamente analfabeta. Os portugueses envaidecem-se daquilo para
que nada contribuíram e escondem as provas do próprio esforço.
Permitam
que um português abra uma excepção. O meu pai formou-se em engenharia
electrotécnica e a mãe andou um par de anos num instituto de
contabilidade. Daí para trás, desfila uma imensa linhagem de
guardas-fiscais, empregados fabris, moleiros, agricultores, donas de
casa e, se recuar três gerações, uma pedinte. Os privilégios de que gozo
devo-os ao trabalho deles e, se não se importam, um pedacinho ao meu.
De qualquer modo, aqui a gratidão - essencial - importa menos do que os
factos. E a desesperada incapacidade em lidar com estes exibe um tipo
notável de carácter individual, além de um talento colectivo que não
engana. Embora queira enganar.
Quinta-feira, 15 de Agosto
O que faz falta
Lembram-se
de Raquel Varela, a personalidade celebrizada numa emissão do Prós e
Contras após ter sofrido um banho de economia básica a cargo de um
adolescente? Ao que parece, os 15 minutos de fama terminaram, pelo que a
senhora regressou à obscuridade do blogue subsidiário do PCP
(5dias.wordpress.com) onde desabafa para consolo de cerca de duzentos e
trinta devotos. O lado mau é os delírios da dr.ª Raquel estarem
limitados a tão poucos. O lado óptimo é os delírios continuarem intactos
e impermeáveis à realidade.
Ainda há dias, a dr.ª Raquel amanhou
um pequeno texto sobre o que parece constituir o seu assunto de eleição:
a juventude. O ponto de partida nem é abstruso de todo, já que a dr.ª
Raquel acha os jovens (no caso entre os 16 e os 25 anos) do nosso tempo
"incultos, ignorantes", que vegetam "em frente ao computador" e vivem
"no estado animal de comer, dormir e ler dois parágrafos no Facebook".
Abstrusa
e, convenhamos, hilariante é a alternativa proposta. Uma pessoa normal
consideraria que a mocidade actual genericamente carece de um ensino
mais exigente, de um módico de autonomia, de noções de responsabilidade,
de ambições profissionais, de expectativas adequadas ao mundo
contemporâneo e de alguma curiosidade face ao mesmo. A dr.ª Raquel não.
Para ela, o que faz falta aos jovens é seguirem o exemplo que a dr.ª
Raquel supõe ser o dos respectivos antepassados e provocarem baderna
pública. Um só parágrafo representa todo um programa (de humor): "Ser
empreendedor era começar por tirarem um curso de memória histórica de
organização com os pais, outro de política e cultura com os avós, e
virem para a rua e tornar esta política ingovernável."
Quando
terminarem de rir, convirá notar que a dr.ª Raquel se esqueceu, talvez
deliberadamente, dos jovens cujos progenitores não possuem no currículo a
militância comunista ou em grupelhos afins e preferiram menos
totalitárias. Mas isso é irrelevante: desde que os restantes saiam de
casa aos berros ou decididos a partir o que os rodeia, a dr.ª Raquel
ficará realizada e o País resolvido - pelo menos na opinião dela, que se
confessa estudiosa dos movimentos sociais.
Trata-se,
evidentemente, de um problema de deformação profissional. Se a dr.ª
Raquel fosse ornitóloga, incentivaria a juventude a empoleirar-se nos
galhos das árvores. Sendo especialista em revoluções, não descansa
enquanto não assistir a uma, sobretudo das que derrubam democracias.
Esperemos que tenha azar: antes vegetais que criminosos.
Sábado, 17 de Agosto
Sem limites
A
chamada lei da limitação dos mandatos autárquicos, cujo espírito
ninguém percebeu ou percebe, é bastante discutível. O resultado não se
discute: há poucas democracias tão exóticas quanto a nossa. Basta
assistir à quantidade de autarcas que, chegados ao limite de reeleições
no seu poiso de longos anos, vão literalmente pregar para outra
freguesia ou, para ser exacto, município. Basta notar os escrúpulos com
que a classe política se eximiu de produzir um esclarecimento definitivo
- ou provisório, vá - sobre o assunto. E basta, por fim, constatar a
pluralidade de interpretações que os tribunais dedicam a cada caso, de
acordo com a instância, a geografia ou a preferência.
Mas se se
fala imenso dos autarcas espertalhões, fala-se estranhamente menos dos
autarcas que acumulam a esperteza com a preguiça, leia-se aqueles que
não só insistem em recandidatar-se após cumprirem três mandatos
consecutivos como insistem em fazê-lo no concelho original. O processo é
simples: escolhe-se um verbo de encher (diplomaticamente: um "delfim",
ou uma "jovem promessa") que concorra à câmara no lugar do ex-presidente
enquanto este desliza para a Assembleia Municipal e manipula daí os
cordelinhos. De norte a sul, o arranjinho traduz-se em diversos
cartazes, nos quais o retrato do chefe ensombra o do verbo de encher.
Sem novidades, o arranjinho também já divide a jurisprudência.
Não
falha. Entre nós, as intenções sinceras ou simuladas de democratizar o
Estado terminam em estado comatoso. A regionalização, abençoadamente
enxotada, abriu o apetite de uma vasta estirpe de caciques. As
candidaturas independentes, idealmente destinadas à abertura à
"sociedade civil", limitam-se por regra a amparar o refugo partidário. E
as limitações dos mandatos deram nisto. Eis o famoso desenrascanço
pátrio. A pátria é que assim não se desenrasca.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
17/08713
.
Sem comentários:
Enviar um comentário