Democracia ou capitalismo?
A democracia perdeu a batalha mas só não perderá a guerra se as
maiorias perderem o medo, se revoltarem dentro e fora das instituições e
forçarem o capital a voltar a ter medo, como sucedeu há 60 anos
A relação entre democracia e capitalismo foi
sempre uma relação tensa, senão mesmo de contradição. O capitalismo só
se sente seguro se governado por quem tem capital ou se identifica com
as suas "necessidades", enquanto a democracia é o governo das maiorias
que nem têm capital nem razões para se identificar com as "necessidades"
do capitalismo, bem pelo contrário. O conflito é distributivo: a pulsão
para a acumulação e concentração da riqueza por parte dos capitalistas e
a reivindicação da redistribuição da riqueza por parte dos
trabalhadores e suas famílias. A burguesia teve sempre pavor de que as
maiorias pobres tomassem o poder e usou o poder político que as
revoluções do século XIX lhe concederam para impedir que tal ocorresse.
Concebeu a democracia liberal de modo a garantir isso mesmo, através de
medidas que mudaram no tempo mas mantiveram o objetivo: restrições ao
sufrágio, primazia absoluta do direito de propriedade individual,
sistema político e eleitoral com múltiplas válvulas de segurança,
repressão violenta de atividade política fora das instituições,
corrupção dos políticos, legalização dos lóbis. E sempre que a
democracia se mostrou disfuncional, manteve-se aberta a possibilidade do
recurso à ditadura, o que aconteceu muitas vezes.
No imediato pós-guerra, muito poucos países tinham democracia,
vastas regiões do mundo estavam sujeitas ao colonialismo europeu que
servira para consolidar o capitalismo euro-norte-americano, a Europa
encontrava-se devastada por mais uma guerra provocada pela supremacia
alemã, e, no Leste, consolidava-se o regime comunista que se via como
alternativa ao capitalismo e à democracia liberal. Foi neste contexto
que surgiu o chamado capitalismo democrático, um sistema assente na
ideia de que, para ser compatível com a democracia, o capitalismo
deveria ser fortemente regulado, o que implicava a nacionalização de
setores-chave da economia, a tributação progressiva, a imposição da
negociação coletiva e até, como aconteceu na então Alemanha Ocidental, a
participação dos trabalhadores na gestão das empresas. No plano
científico, Keynes representava, então, a ortodoxia económica e Hayek a
dissidência. No plano político, os direitos económicos e sociais foram o
instrumento privilegiado para estabilizar as expectativas dos cidadãos e
defendê-las das flutuações constantes e imprevisíveis dos "sinais dos
mercados". Esta mudança alterava os termos do conflito distributivo mas
não o eliminava. Pelo contrário, tinha todas as condições para o acirrar
logo que abrandasse o crescimento económico, o que se registou nas três
décadas seguintes. E assim sucedeu.
Desde 1970, os Estados centrais têm vindo a gerir o conflito entre
as exigências dos cidadãos e as exigências do capital, recorrendo a um
conjunto de soluções que gradualmente foram dando mais poder ao capital.
Primeiro, foi a inflação, depois, a luta contra a inflação acompanhada
do aumento do desemprego e do ataque ao poder dos sindicatos, a seguir, o
endividamento do Estado em resultado da luta do capital contra a
tributação, da estagnação económica e do aumento das despesas sociais
decorrentes do aumento do desemprego e, finalmente, o endividamento das
famílias, seduzidas pelas facilidades de crédito concedidas por um setor
financeiro finalmente livre de regulações estatais, para iludir o
colapso das expectativas a respeito do consumo, educação e habitação.
Até que a engenharia das soluções fictícias chegou ao fim, com a
crise de 2008, e se tornou claro quem tinha ganho o conflito
distributivo: o capital. Prova disso: o disparar das desigualdades
sociais e o assalto final às expectativas de vida digna da maioria (os
cidadãos) para garantir as expectativas de rentabilidade da minoria (o
capital financeiro). A democracia perdeu a batalha mas só não perderá a
guerra se as maiorias perderem o medo, se revoltarem dentro e fora das
instituições e forçarem o capital a voltar a ter medo, como sucedeu há
60 anos.
IN "VISÃO"
30/05/13
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