O adeus às armas
740 mil pessoas
morrem em cada ano como resultado de violência armada. 400 mil dessas
mortes são perpetradas por armas pequenas e armas ligeiras (revólveres,
pistolas, espingardas, carabinas, etc.). Engana-se quem confinar estes
números a contextos de guerra. Há guerras ocultas atrás do nome paz que
matam tanto ou mais do que as guerras sem disfarce.
Atesta-o o
número de mulheres mortas por armas de fogo em espaço doméstico, como o
atesta o facto de o número de homicídios em diversos países em condição
de "reconstrução pós-conflito" ser bem superior ao registado ao longo do
conflito.
Por isso, o desarmamento das sociedades tem que ser uma
prioridade global. A agenda do desarmamento é hoje muito mais exigente
do que antes. Ele tem que incidir sobre as armas de destruição em massa
tradicionais - com especial ênfase nos arsenais nucleares, químicos e
bacteriológicos - tanto como nas armas de destruição em massa
efetivamente usadas em cada dia que passa; as armas pequenas e as armas
ligeiras.
A multiplicação de "acidentes" e de "chacinas
inexplicáveis" em sociedades que dormem tranquilamente sobre vulcões de
violência ignorados desafia a placidez com que a proliferação de armas
de fogo - ao abrigo de discursos sempre muito sensatos, de necessidade
de defesa pessoal com um alcance invariavelmente tido como meramente
dissuasor - vem sendo tratada nas nossas sociedades. Há pois uma nova
agenda de desarmamento que se impõe como garante do direito à vida. E
essa agenda tem que ser ambiciosa tanto quanto às armas nela incluídas
como no seu alcance: desarmar a sério implica combater as representações
fantasiosas sobre o poder conferido pelos revólveres, implica conhecer
com rigor os custos totais que as nossas sociedades pagam pelos
"acidentes" com armas de fogo e implica regular de forma corajosa a
oferta dessas armas.
O comércio de armas é um universo em que as
fronteiras entre o legal e o ilegal se revelam perigosamente fluidas e
em que os interesses cínicos dos senhores da guerra e dos seus mandantes
à distância se misturam com os discursos de defesa nacional ou até
mesmo de proteção de indústrias nacionais e do emprego por elas gerado. O
que está em jogo é um volume de negócios de 70 mil milhões de dólares
anuais. Regular o comércio de armas é pois um esforço titânico e será
sempre envolto em suspeitas de se materializar em regras feitas à medida
dos interesses de uns produtores contra outros. Pois seja. Mas a não
regulação é sempre pior que uma regulação incompleta e imperfeita. O que
hoje temos, em escala mundial, é um vazio de regras que os negociantes
sem escrúpulos surfam sempre a contento. Serve-lhes às mil maravilhas a
regra de facto em vigor: "transferir e esquecer."
É por isso que o
Tratado sobre Comércio de Armas aprovado esta semana pela Assembleia
Geral das Nações Unidas é um passo importante. Como sublinhou um dos
delegados, "a pergunta que devemos fazer não é se devemos aprovar um
tratado como este, mas sim por que demorámos tanto para aprovar este
tratado". É apenas um primeiro passo no sentido de estabelecer padrões
de comércio de armas convencionais e que fixa como responsabilidades dos
Estados que o ratifiquem o fornecimento de informação transparente
sobre todas as suas importações e exportações de armas e a proibição de
transferências sabidamente destinadas a ser usadas na perpetração de
genocídio, crimes contra a humanidade, violações do direito humanitário e
ataques contra civis.
É pouco? É, claro. Tem contradições e
ambivalências indisfarçáveis? Tem, certamente. Mas, em nome das vidas
que se podem mesmo assim salvar, é preferível o pouco, com contradições e
ambivalências, ao vazio.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
05/04/13
.
Sem comentários:
Enviar um comentário