09/01/2013

LÍGIA AMÂNCIO







Violência e culpa 

 Na recente campanha lançada pelo Governo contra a violência doméstica, os agressores são os únicos ausentes de todo o enredo e há um discurso que vitimiza ainda mais as vítimas. Onde pára o pensamento? Salvo raras e meritórias excepções de alguns comentadores e algumas comentadoras, a actualidade é, hoje, marcada por uma ausência de reflexão e de esforço de compreensão dos acontecimentos, do momento que vivemos. Pelo menos no discurso mediático, a reflexão cedeu o lugar a relações de causalidade simplistas, assentes em chavões e ideias feitas e análises desprovidas de factores de contexto, reduzindo tudo a factores psicológicos, como a culpa. Sinal dos tempos, a palavra culpa invadiu o espaço de outros significados e substitui frequentemente os conceitos de razão ou causa de um acontecimento ou decisão política, ou mesmo de responsabilidade, no plano individual e institucional. A culpa permite identificar um inimigo e serve de veículo às emoções e frustrações, mas pouco ou nada adianta para perceber a contribuição de determinados factores para um determinado efeito.

Um exemplo flagrante deste espírito do tempo é a recente campanha lançada pelo Governo contra a violência doméstica. Uma figura de mulher, exibindo feridas no rosto e nas mãos, pousa uma mão protectora no ombro de uma criança. A imagem é acompanhada de um texto onde se referem as consequências, sobre as crianças, dos actos de agressão exercidos sobre ela e que termina admoestando-a a dar um murro na mesa para proteger os filhos dessas consequências. Surpreendentemente, os agressores são os únicos ausentes de todo este enredo. E no entanto eles existem e são muitas vezes conhecidos da família, dos vizinhos, das autoridades policiais e até dos tribunais que nem sempre recorrem à possibilidade, prevista na lei, de impor o seu afastamento da vítima, ou não têm meios para fazer cumprir uma norma indispensável para a protecção da vida.


A centragem exclusiva na agredida omite um dos actores principais destas histórias e reforça a crença de que a violência é, de alguma forma, merecida, face às hesitações, às queixas feitas e depois retiradas, às desculpas tantas vezes aceites...Todas estas observações, que não deixam de ser verdadeiras em alguns casos, alimentam o desprezo pelas vítimas e pela sua aparente incapacidade de lutar contra a situação. Assim se perpetua a tolerância em relação à violência e a indiferença em relação às vítimas iludindo, ao mesmo tempo, a falha das instituições em proteger os direitos dos cidadãos. Face à complexidade do fenómeno da violência doméstica, esta campanha serve apenas para acentuar a culpa das próprias vítimas, ao sublinhar o seu papel de mães. E o que dizer então das crianças das 33 mulheres assassinadas em 2012, mais ainda do que no ano anterior? Essas não sofreram consequências? E o Estado não tinha a responsabilidade de proteger essas pessoas e as suas famílias?

Esta campanha sugere, além disso, uma curiosa metáfora da actualidade. Um discurso que vitimiza mais ainda as próprias vítimas, um convite à alienação das consciências, o isolamento das pessoas face à ausência do cumprimento dos deveres do Estado: vítimas de agressão sem agressores, nem protecção por parte das instâncias a quem cabe essa função, dêem um murro na mesa e deixarão de o ser. Tão simples como os portugueses terem vivido acima das suas possibilidades como razão para a crise em que se encontram. Poupem, não sejam piegas, façam sacrifícios em nome dos vossos filhos e reajam à violência a que estão sujeitos com um murro na mesa...

IN "PÚBLICO"
04/01/2013

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