Violência e culpa
Na recente campanha lançada pelo Governo contra a violência doméstica, os agressores são os únicos ausentes de todo o enredo e há um discurso que vitimiza ainda mais as vítimas.
Onde pára o pensamento? Salvo raras e meritórias excepções de alguns
comentadores e algumas comentadoras, a actualidade é, hoje, marcada por
uma ausência de reflexão e de esforço de compreensão dos acontecimentos,
do momento que vivemos. Pelo menos no discurso mediático, a reflexão
cedeu o lugar a relações de causalidade simplistas, assentes em chavões e
ideias feitas e análises desprovidas de factores de contexto, reduzindo
tudo a factores psicológicos, como a culpa. Sinal dos tempos, a palavra
culpa invadiu o espaço de outros significados e substitui
frequentemente os conceitos de razão ou causa de um acontecimento ou
decisão política, ou mesmo de responsabilidade, no plano individual e
institucional. A culpa permite identificar um inimigo e serve de veículo
às emoções e frustrações, mas pouco ou nada adianta para perceber a
contribuição de determinados factores para um determinado efeito.
Um exemplo flagrante deste espírito do tempo é a
recente campanha lançada pelo Governo contra a violência doméstica. Uma
figura de mulher, exibindo feridas no rosto e nas mãos, pousa uma mão
protectora no ombro de uma criança. A imagem é acompanhada de um texto
onde se referem as consequências, sobre as crianças, dos actos de
agressão exercidos sobre ela e que termina admoestando-a a dar um murro
na mesa para proteger os filhos dessas consequências.
Surpreendentemente, os agressores são os únicos ausentes de todo este
enredo. E no entanto eles existem e são muitas vezes conhecidos da
família, dos vizinhos, das autoridades policiais e até dos tribunais que
nem sempre recorrem à possibilidade, prevista na lei, de impor o seu
afastamento da vítima, ou não têm meios para fazer cumprir uma norma
indispensável para a protecção da vida.
A centragem exclusiva na agredida omite um dos actores principais
destas histórias e reforça a crença de que a violência é, de alguma
forma, merecida, face às hesitações, às queixas feitas e depois
retiradas, às desculpas tantas vezes aceites...Todas estas observações,
que não deixam de ser verdadeiras em alguns casos, alimentam o desprezo
pelas vítimas e pela sua aparente incapacidade de lutar contra a
situação. Assim se perpetua a tolerância em relação à violência e a
indiferença em relação às vítimas iludindo, ao mesmo tempo, a falha das
instituições em proteger os direitos dos cidadãos. Face à complexidade
do fenómeno da violência doméstica, esta campanha serve apenas para
acentuar a culpa das próprias vítimas, ao sublinhar o seu papel de mães.
E o que dizer então das crianças das 33 mulheres assassinadas em 2012,
mais ainda do que no ano anterior? Essas não sofreram consequências? E o
Estado não tinha a responsabilidade de proteger essas pessoas e as suas
famílias?
Esta campanha sugere, além disso, uma curiosa metáfora
da actualidade. Um discurso que vitimiza mais ainda as próprias vítimas,
um convite à alienação das consciências, o isolamento das pessoas face à
ausência do cumprimento dos deveres do Estado: vítimas de agressão sem
agressores, nem protecção por parte das instâncias a quem cabe essa
função, dêem um murro na mesa e deixarão de o ser. Tão simples como os
portugueses terem vivido acima das suas possibilidades como razão para a
crise em que se encontram. Poupem, não sejam piegas, façam sacrifícios
em nome dos vossos filhos e reajam à violência a que estão sujeitos com
um murro na mesa...
IN "PÚBLICO"
04/01/2013
.
Sem comentários:
Enviar um comentário