A roleta das rendas
Muita coisa devia ser mudada na lei das rendas. Mas era, curiosamente, uma lei para tempos de crise...
Foi aprovada uma nova lei das rendas, prevendo o próprio diploma que o
novo enquadramento entre em vigor em novembro. Uma matéria sempre
polémica, com muitos riscos associados, sobretudo a nível da proteção de
inquilinos mais vulneráveis, seja por força de baixos rendimentos ou de
avançada idade, dois fatores que colidem seriamente com a capacidade de
mobilidade que a nova lei virá impor.
Mas é necessário dizer que o mercado do arrendamento tem de ser
corrigido, atualizado, para que se acabe com as inúmeras distorções a
que está submetido, se limpem as inúmeras situações de abuso a que tem
dado cobertura ao longo dos tempos, se trave, finalmente, o processo
contínuo de degradação do parque imobiliário e se abra, também, um
verdadeiro e competitivo mercado de arrendamento, condição fundamental
da vida das sociedades modernas.
O congelamento de rendas ou a imposição de limites aos senhorios na
atualização das mesmas, em contraste com o princípio geral da livre
negociação entre privados, é uma história que vem de longe e que tem
como grande referência histórica os anos de hiperinflação, na Alemanha,
entre as duas grandes guerras. A necessidade de assegurar a estabilidade
dos contratos, em especial do valor das rendas, num período de grande
volatilidade, garantiu às famílias um porto seguro e estável, mesmo que
numa propriedade privada pertencente a um terceiro. E o precedente, que
nasceu como medida de exceção para enfrentar um período também
excecional, ficou criado, sendo replicado em vários países em épocas de
maior aflição. Nesta altura, aliás, e durante muito tempo ainda, os
ricos tinham propriedade imobiliária e os outros não a tinham, pelo que
necessitavam de alugar casa. E esta era uma realidade quase imutável. O
rico continuaria rico e proprietário, e os outros não. Tudo isto mudou. E
mudou há já muito tempo.
É preciso dizer, de forma clara, que o Governo fez bem ao rever o
quadro legal existente. Como também já o tinham feito outros governos,
embora de forma mais pontual e moderada. O que aconteceu é que, tal como
em muitas outras matérias politicamente incómodas, a opção desses
vários governos - e dos respetivos suportes parlamentares - foi a de
deixar correr as coisas, mexer o menos possível com os interesses
dominantes e chutar o problema para a frente. Com tudo o que isso tem,
sempre, necessariamente, de mau.
Cavaco Silva, antes de promulgar esta nova lei do arrendamento,
assegurou-se, junto do Governo, de que ficavam salvaguardados os casos
dos inquilinos de maior fragilidade social.
Este é, de facto, o ponto-chave, a questão que interessa discutir, a
situação que importa precaver, nesta reforma. Tudo o resto deve ser
pacífico. O que devia ser básico, mas, na verdade, não é. Porque afirmar
isto corresponde a dizer que a lei "protecionista" não pode continuar a
ser defendida tendo em vista quem não necessita dessa proteção. Afirmar
isto corresponde a dizer que já não é tolerável a atitude de quem nada
quer mudar, em nome de princípios que ficaram, entretanto, vazios de
conteúdo - em muitos casos, esvaziados pelo simples passar do tempo.
Ser proprietário (de imóveis) já não é igual a ser rico. Há, de
resto, uma percentagem enorme de portugueses que são proprietários - e
está na cara que não somos um país de ricos. Há proprietários que eram
ricos e já não são. E existirão, seguramente, numerosos inquilinos que
não têm problemas de dinheiro - muitos deles passaram, até, a ser ricos.
É indefensável, é incompreensível, que se continue a proteger um
inquilino milionário, mantendo-lhe, por via legal, rendas baixíssimas,
fixadas há dezenas de anos. E ainda menos sentido faz, passando mesmo a
ser uma injustiça consagrada na lei, que essa renda injusta cobrada a
esse milionário seja imposta a um senhorio que é pobre.
O Governo, é claro, jurou ao Presidente que "sim", que estão
assegurados os mecanismos que garantem essa proteção aos especialmente
desprotegidos. Além de se registar a forma como Cavaco Silva geriu esta
matéria, fazendo acompanhar a promulgação da lei da informação de que
tinha pedido, e recebido, garantias do Governo de que zelaria pelos
interesses dos arrendatários mais carenciados - e de se estranhar a
declaração da ministra Assunção Cristas, de que tais garantias
existiriam para além do que se encontra já previsto na lei -, a verdade é
que estes processos de mudança profunda, verdadeiramente estrutural,
nunca são indolores. E, neste caso, tratando-se de matéria tão sensível
como a casa onde moramos, o sítio a partir do qual organizamos a nossa
vida, o nosso trabalho, a nossa família, tudo se torna mais complicado.
Muita gente - toda aquela gente que, apesar de não ser reconhecida
oficialmente como "carenciada" o é, de facto -, terá dias muito
complicados pela frente. Aqui, passe o trocadilho para jurista, não há
garantias reais, venham elas de Presidente ou de ministro. Real é apenas
a vida, com uma complexidade impossível de antecipar em qualquer lei,
por muito perfeita que seja.
Esperemos que o Governo tenha, também neste aspeto, a coragem, o
bom senso e a sensibilidade de acompanhar estes casos e fazer todas as
alterações que se venham a mostrar essenciais para evitar que a nova lei
imponha sofrimento desproporcionado ou mesmo desumano.
No final de contas, há uma realidade que não podemos esquecer. O
regime especial das rendas nasceu e foi replicado em épocas de crise
aguda. Salvaguardadas as devidas diferenças, para acudir às pessoas em
épocas de dificuldade como a que hoje atravessamos. Uma vez mais,
estamos a fazer o que deve ser feito... na altura em que não devia ser
feito.
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