Aquela que morreu
para resgatar o nosso medo
Como
definir a trajetória fulgurante e a vida efémera de Norma Jean
Mortenson? Meio século depois, como exprimir essa proximidade emocional
que nenhuma distância temporal parece conseguir rasurar? Eis uma visão
possível: "A solidão foi difícil, o papel mais difícil que
representaste. Hollywood criou uma super-estrela e o sofrimento foi o
preço que tiveste de pagar. Mesmo quando morreste, a imprensa continuou a
assediar-te: tudo o que os jornais tiveram para dizer foi que Marilyn
foi encontrada nua."
Parece, talvez, o balanço de um desencantado
moralista, ao mesmo tempo sociólogo e filósofo, capaz de combinar a
frieza do discurso analítico com a vibração das memórias. O certo é que
são palavras provenientes da canção Candle in the Wind, de Elton John,
escrita com Bernie Taupin e lançada em 1974 (reescrita, em 1997, em
homenagem à Princesa Diana). A sua contundência ajuda-nos a compreender
algo de essencial: se Marilyn Monroe persiste como uma poderosa
referência mitológica, não é apesar da sua morte prematura, mas através
dela.
Grande questão existencial, sem dúvida. Por um lado, vivemos
no delírio de uma civilização mediática que, da lírica do rap às
aventuras de Batman, passando pelo jornalismo contaminado pela "reality
TV", mantém uma relação "directa", ora sarcástica, ora moralista, com a
nitidez cruel da morte; por outro lado, somos incapazes de pensar a
morte no plano individual, a ponto de nos acomodarmos numa definição
social de "cidadão" tingida de infantilismo, descrevendo cada um de nós
como um mero alvo que importa "proteger".
Para esta civilização
com medo do seu próprio medo, Marilyn persiste como uma imagem
apaziguadora: face à sua candura, podemos comportar-nos como se a sua
morte permanecesse fora de qualquer medida do tempo. No limite da
perversidade (coisa também infantil, convém recordar), queremos
partilhar a mitologia da sua morte. Foi o que fez, aliás, Hugh Hefner, o
fundador da revista Playboy (cujo primeiro número, em Dezembro de 1953,
consagrou Marilyn como a primeira "playmate"): Hefner adquiriu, para si
próprio, a cripta ao lado da de Marilyn, no cemitério do Westwood
Village Memorial Park, em Los Angeles.
Num certo sentido (que é,
inevitavelmente, um sentido trágico), Marilyn renasce regularmente no
nosso imaginário através de um assombramento que nenhuma efeméride pode
resumir. Ela é aquela que já não está presente mas que, em boa verdade,
nunca partiu: contemplamos nela a nossa imensa vulnerabilidade. Mais do
que isso: a sua cândida luminosidade substitui-se ao nosso medo da
morte, como se algo dela aceitasse acolher e resgatar o pânico de não
sabermos lidar com o silêncio de já não existirmos. Natalie Wood resumiu
tudo isso numa frase de tocante inteligência afectiva: "Quando vemos
Marilyn no ecrã, não queremos que lhe aconteça nada de mal."
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
05/07/12
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