Volta a França sem bicicletas
1. Na Europa gosto da liberdade, da paisagem, dos valores
civilizacionais e de muitas outras coisas entre as quais os...
transportes públicos. Uma viagem por França este verão evidencia até que
ponto as cidades e as periferias têm vida e conexão entre si por causa
de uma rede ferroviária urbana e de longa distância verdadeiramente
excecional. Em todas as grandes cidades (Toulouse, Bordéus, Nantes,
Paris, Dijon) há investimentos de metros de superfície a serem
concretizados ou ainda a cheirar a novo. Ou seja: a célebre lógica do
investimento público decidido em 2008 para atenuar a crise financeira
está ainda em concretização mas faz-se com obras que garantem melhor
produtividade para quem trabalha, menos poluição e mais qualidade de
vida.
2. Já as viagens pelas estradas pequenas revelam a alma de uma
nação-celeiro da Europa. Esta agricultura de vastíssimas extensões criou
uma forma de vida e uma multiplicação de pequenas vilas que dão coesão à
grande França. Mas quanto mais tempo irá a Europa pagar uma Política
Agrícola Comum que recompensa fortemente franceses, alemães e espanhóis?
A riqueza e tradição de uns é a pobreza de outros. Quando se fala em
direitos adquiridos também é isto. Quem terá coragem para enfrentar, um
destes dias, os agricultores franceses e pôr em causa o seu nível de
vida - e por arrastamento de toda a sociedade francesa? Mexer na PAC é
tão crítico como discutir a existência do euro. Também um dia isso
acontecerá.
3. A guerra dos combustíveis é outra característica
comum a toda a Europa. Em França, a batalha está a ser ganha pelas
grandes superfícies. Em cada grande hipermercado (ou pequeno
supermercado de província) há um posto de abastecimento. O resultado é
impressionante: o preço do gasóleo vai desde 1,30 euros numa estação
Leclerc ou Intermarché até 1,55 euros num posto de uma gasolineira
clássica como a Total. A guerra é tal que também as petrolíferas
tradicionais começaram a abrir postos low-cost.
4. Uma das coisas
mais estimulantes ao viajar-se pela Europa é a hipótese de se conhecer
as cidades ou a natureza a partir de uma bicicleta, até porque sobretudo
no centro do Europa há um respeito pelos ciclistas que não existe em
Portugal. Talvez por isso não fosse óbvio que deixar quatro bicicletas à
porta de uma estação de comboios, próxima de Paris, redundasse no roubo
de duas delas, apesar dos cadeados de segurança. Há dezenas delas
estacionadas, há câmaras, mas... desapareceram na mesma. Próximo passo:
Polícia de Maison-Lafitte. Seria expectável alguma notícia sobre as
bicicletas? A agente deu-me uma boa informação: iam ver nas câmaras e
avisava-me por telemóvel. Mais: se o roubo fosse detetado, seria
indemnizado... Fiquei surpreendido: isto sim, é um país civilizado.
Pois... zero, até hoje.
Entretanto, no dia seguinte, com o carro e
as duas bicicletas restantes, o destino foi o incrível e gigantesco
Museu da Ciência em Paris - La Villete. Pelo sim pelo não, carro
estacionado no parque subterrâneo do museu, para maior segurança.
Resultado: mais duas bicicletas roubadas. Devido à hora de fecho ninguém
tomou conta da ocorrência. No dia seguinte, após várias insistências
telefónicas, a resposta foi seca e grossa: "O problema não é nosso, não
nos responsabilizamos pelo que sucede no parque de estacionamento. Bom
dia". Alguém quis saber porquê e como evitar isto aos utentes do museu?
Não. O que diria um português pessimista? Nem em Portugal...
5. E
no entanto, o melhor é guardar as boas recordações. Por exemplo, desse
lugar mágico que é o Monte de St. Michel, no norte da Normandia, e onde
num fim de tarde quente e sem vento de sábado foi possível passar pela
imensa Abadia e descobrir, em diferentes salas, violoncelos, harpas ou
flautas com a sonoridade que só arredondados tetos em pedra permitem.
Mas surpreendente foi a presença de um animador de 'videojam', a jogar
com luzes e sombras para contar as fábulas que percorreram o imaginário
medieval do Monte St. Michel. Eis como pagar o bilhete para visitar um
monumento não significa desembocar apenas na sua arquitetura sem nada
mais para oferecer. Uma ideia que valia a pena usar mais em Portugal.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
23/08/12
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