25/08/2012

DANIEL DEUSDADO






Volta a França sem bicicletas 

1. Na Europa gosto da liberdade, da paisagem, dos valores civilizacionais e de muitas outras coisas entre as quais os... transportes públicos. Uma viagem por França este verão evidencia até que ponto as cidades e as periferias têm vida e conexão entre si por causa de uma rede ferroviária urbana e de longa distância verdadeiramente excecional. Em todas as grandes cidades (Toulouse, Bordéus, Nantes, Paris, Dijon) há investimentos de metros de superfície a serem concretizados ou ainda a cheirar a novo. Ou seja: a célebre lógica do investimento público decidido em 2008 para atenuar a crise financeira está ainda em concretização mas faz-se com obras que garantem melhor produtividade para quem trabalha, menos poluição e mais qualidade de vida. 

2. Já as viagens pelas estradas pequenas revelam a alma de uma nação-celeiro da Europa. Esta agricultura de vastíssimas extensões criou uma forma de vida e uma multiplicação de pequenas vilas que dão coesão à grande França. Mas quanto mais tempo irá a Europa pagar uma Política Agrícola Comum que recompensa fortemente franceses, alemães e espanhóis? A riqueza e tradição de uns é a pobreza de outros. Quando se fala em direitos adquiridos também é isto. Quem terá coragem para enfrentar, um destes dias, os agricultores franceses e pôr em causa o seu nível de vida - e por arrastamento de toda a sociedade francesa? Mexer na PAC é tão crítico como discutir a existência do euro. Também um dia isso acontecerá. 

3. A guerra dos combustíveis é outra característica comum a toda a Europa. Em França, a batalha está a ser ganha pelas grandes superfícies. Em cada grande hipermercado (ou pequeno supermercado de província) há um posto de abastecimento. O resultado é impressionante: o preço do gasóleo vai desde 1,30 euros numa estação Leclerc ou Intermarché até 1,55 euros num posto de uma gasolineira clássica como a Total. A guerra é tal que também as petrolíferas tradicionais começaram a abrir postos low-cost. 

4. Uma das coisas mais estimulantes ao viajar-se pela Europa é a hipótese de se conhecer as cidades ou a natureza a partir de uma bicicleta, até porque sobretudo no centro do Europa há um respeito pelos ciclistas que não existe em Portugal. Talvez por isso não fosse óbvio que deixar quatro bicicletas à porta de uma estação de comboios, próxima de Paris, redundasse no roubo de duas delas, apesar dos cadeados de segurança. Há dezenas delas estacionadas, há câmaras, mas... desapareceram na mesma. Próximo passo: Polícia de Maison-Lafitte. Seria expectável alguma notícia sobre as bicicletas? A agente deu-me uma boa informação: iam ver nas câmaras e avisava-me por telemóvel. Mais: se o roubo fosse detetado, seria indemnizado... Fiquei surpreendido: isto sim, é um país civilizado. Pois... zero, até hoje.

Entretanto, no dia seguinte, com o carro e as duas bicicletas restantes, o destino foi o incrível e gigantesco Museu da Ciência em Paris - La Villete. Pelo sim pelo não, carro estacionado no parque subterrâneo do museu, para maior segurança. Resultado: mais duas bicicletas roubadas. Devido à hora de fecho ninguém tomou conta da ocorrência. No dia seguinte, após várias insistências telefónicas, a resposta foi seca e grossa: "O problema não é nosso, não nos responsabilizamos pelo que sucede no parque de estacionamento. Bom dia". Alguém quis saber porquê e como evitar isto aos utentes do museu? Não. O que diria um português pessimista? Nem em Portugal... 

5. E no entanto, o melhor é guardar as boas recordações. Por exemplo, desse lugar mágico que é o Monte de St. Michel, no norte da Normandia, e onde num fim de tarde quente e sem vento de sábado foi possível passar pela imensa Abadia e descobrir, em diferentes salas, violoncelos, harpas ou flautas com a sonoridade que só arredondados tetos em pedra permitem. Mas surpreendente foi a presença de um animador de 'videojam', a jogar com luzes e sombras para contar as fábulas que percorreram o imaginário medieval do Monte St. Michel. Eis como pagar o bilhete para visitar um monumento não significa desembocar apenas na sua arquitetura sem nada mais para oferecer. Uma ideia que valia a pena usar mais em Portugal. 


IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
23/08/12

Sem comentários: