A perda
A idade carrega consigo muitas mazelas, e outras tantas vantagens. Uma
delas é seguramente a capacidade de ouvir os outros, de apreciar o
lastro distante da dor alheia. Por esta altura em Portugal há notícia da
morte de crianças por afogamento. E que coisa pior podemos ouvir dos
outros do que falar da morte de um filho. Deste sentimento contranatura
de morrer o mais novo de todos. Que consolo podemos dar a quem relata
com voz miudinha e sumida esta perda? Na lógica das coisas seríamos
sempre os primeiros. Há aqui uma perversão profunda da ordem do mundo.
Insanável. Ouvir falar uma mãe da perda de um filho é avassalador. Moer a
dor de outra pessoa. Partilhar a emoção do relato quase sempre no
presente do indicativo quando a realidade grita que não será mais assim.
Aquela mãe perdera um filho de repente. Sai de casa de manhã,
despede-se com um beijo, e é atropelado mais à frente. E o dia passa, e
os outros a seguir, e para esta mãe a vida está irremediavelmente
interrompida. Esta dor é difícil de escutar porque é maior do que a mãe
que ma conta, maior do que nós, põe fim àquilo que temos por certo. Nada
se pode dizer neste momento que faça sentido. Sem manual de instruções
remoemos esta dor alheia mas já não estranha. A criança que sai pela
última vez, cujo regresso não há, cujo nome se repete à exaustão como
num eco. A mãe deseja refazer o dia, as horas antes, mudar o curso da
história, mas a crueza da realidade impede-a. O bolo de anos que não se
volta a soprar. A criança que ninguém quer esquecer e que custa tanto
lembrar. Os dias alinhados com uma lógica, uma ordem, que não existe em
mais nada. Nem na morte, nem na vida. O que posso eu dizer a esta mãe
que de repente julga que o deixou de ser? A quem se recusa a presença do
filho, o seu olhar, o seu sorriso, o seu amor. O que acontece ao dia
seguinte quando para de vez o tempo?
IN "AÇORIANO ORIENTAL"
27/08/12
27/08/12
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