09/08/2012

ANTÓNIO PEDRO VASCONCELOS

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 A QUOTA
   DA EUROPA

A conversa com Jack Valenti e os chefes das majors foi agressiva e nada diplomática, se é que se pode chamar conversa ao ataque frontal com que o Presidente da MPAA se dirigiu à pequena comitiva europeia: o comissário, Balsinha e eu.
Estávamos em 1993, a ronda de negociações sobre o GATT chegava ao fim e só a gente do cinema, com a ajuda de Delors e Deus Pinheiro, teimava em excluir o audiovisual dos históricos acordos que haviam conseguido envolver 123 países!

Deus Pinheiro lembrou que não bastava defender a liberdade do mercado mas que era necessária regulação, medidas que protegessem os mais fracos, que impedissem o ‘abuso de posição dominante’; numa palavra, que o mercado devia ser ‘free and fair’. Pela minha parte – e Jack Valenti mostrava-me um ódio indisfarçável por achar que eu era um dos cabecilhas do movimento, um abominável ‘artista’ – limitei-me a dizer que, quisesse ele ou não, o cinema também era uma arte; uma ‘arte popular’, sem dúvida, mas uma arte. Perante o seu protesto (‘it’s business, not culture’), lembrei-lhe que John Ford era um artista, como Poe ou Melville, e que os seus filmes faziam parte da cultura americana; ou que Do Céu Caiu Uma Estrela, por exemplo, era exibido todos os anos pelo Natal na TV americana. E quando me falou horrorizado das ‘quotas’ de obras europeias impostas pela directiva TV Sem Fronteiras (que, aliás, poucos países respeitam), lembrei-lhe que a discriminação positiva era um meio legítimo que, em determinados momentos da História, as minorias tinham para se defender. E que os negros americanos se batiam há muito pela sua justa integração na indústria, reclamando o aumento da sua ‘quota’ à frente e atrás das câmaras, como ele bem sabia. E naquela altura, nós, os cineastas europeus, eramos ‘os negros da Europa’. 

O jantar acabou e o audiovisual ficou de fora dos acordos do GATT. Mas o que eu percebi nesse dia foi a importância que tinha para os americanos a aprovação sem reservas de um acordo que iria matar a indústria europeia, abrir caminho a uma concorrência desleal com países que praticavam formas de dumping social (trabalho escravo), ecológico (níveis de poluição insustentáveis), político (desrespeito de direitos humanos) e, portanto, económico (preços que desafiavam a concorrência e favoreciam a deslocalização das empresas) e que, nesse dia, a Europa social e culta que havíamos conhecido, tinha terminado. O que me espanta é que, numa altura em que finalmente essa profecia está em vias de se realizar, ninguém se tenha lembrado disso e de propor a renegociação do GATT.



IN "SOL"
06/08/12

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