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Moçambique:
a maldição da abundância?
Um autoritarismo insidioso, disfarçado de empreendedorismo e de aversão à política, germina na sociedade como erva daninha
A "maldição da
abundância" é a expressão usada para caracterizar os riscos que correm
os países pobres onde se descobrem recursos naturais objeto de cobiça
internacional. A promessa de abundância é tão convincente que passa a
condicionar o padrão de desenvolvimento. Eis os riscos: crescimento do
PIB em vez de desenvolvimento social; corrupção generalizada da classe
política; aumento em vez de redução da pobreza; polarização crescente
entre uma pequena minoria super-rica e uma imensa maioria de indigentes;
destruição ambiental e sacrifícios incontáveis às populações onde se
encontram os recursos em nome de um "progresso" que estas nunca
conhecerão; criação de uma cultura consumista que é praticada apenas por
uma pequena minoria urbana mas imposta como ideologia a toda a
sociedade. Em suma, os riscos são que, no final do ciclo da orgia dos
recursos, o país esteja mais pobre do que no seu início. Estarão os
moçambicanos preparados para fugir a esta maldição da abundância?
As sucessivas descobertas de carvão, gás natural, ferro, níquel,
talvez petróleo, anunciam um El Dorado. As grandes multinacionais, como a
Rio Tinto e a brasileira Vale do Rio Doce, exercem as suas atividades
com pouca regulação estatal, celebram contratos que lhes permitem o
saque das riquezas moçambicanas com mínimas contribuições para o
Orçamento de Estado (em 2010, a contribuição foi de 0,04%), contaminam
as águas, violam impunemente os direitos humanos das populações onde
existem recursos, procedendo ao seu reassentamento em condições
indignas, com o desrespeito dos lugares sagrados e dos ecossistemas que
têm organizado a sua vida desde há centenas de anos.
A Vale é hoje um alvo central das organizações ecológicas e de
direitos humanos, pela sua arrogância neocolonial e pelas cumplicidades
que estabeleceu com o governo: conflitos entre os interesses do país
governado pelo Presidente Guebuza e os interesses das empresas do
empresário Guebuza, de que podem resultar graves violações dos direitos
humanos, como aconteceu quando o ativista ambiental Jeremias Vunjane,
que ia à Conferência da ONU, Rio+20, denunciar os atropelos da Vale, foi
arbitrariamente impedido de entrar no Brasil e deportado, ou quando às
organizações de direitos humanos é exigida uma autorização do governo
para visitar as populações reassentadas, como se estas vivessem sob
alçada de um agente soberano estrangeiro.
Há indícios de que os recursos começam a corromper a classe
política e que o conflito no seio desta é entre os que "já comeram" e os
que "querem também comer". Não é de esperar que, nestas condições, os
moçambicanos, no seu conjunto, venham a beneficiar desses recursos. Pode
estar em curso a angolanização de Moçambique. Não será um processo
linear, porque Moçambique é muito diferente de Angola: a liberdade de
imprensa é incomparavelmente superior; a sociedade civil está mais
organizada; os novos-ricos têm medo da ostentação, porque ela é zurzida
na imprensa; o sistema judicial é mais independente; há uma massa
crítica de académicos credenciados para fazer análises sérias, mostrando
que "o rei vai nu".
Por outro lado, o impulso para a transição democrática parece
estancado. A legitimidade revolucionária da Frelimo sobrepõe-se cada vez
mais à sua legitimidade democrática, com a agravante de estar agora a
ser usada para fins bem pouco revolucionários; a partidarização do
aparelho de Estado aumenta em vez de diminuir; a vigilância sobre a
sociedade civil aperta-se sempre que se suspeita de dissidência; mesmo
dentro da Frelimo, a discussão política é vista como distração ante os
benefícios indiscutidos e indiscutíveis do "desenvolvimento". Um
autoritarismo insidioso, disfarçado de empreendedorismo e de aversão à
política ("não te metas em problemas"), germina na sociedade como erva
daninha.
Ao partir de Moçambique, uma frase de Eduardo White cravou-se em
mim: "Nós que não mudamos de medo por termos medo de o mudar". Uma frase
talvez tão válida para a sociedade moçambicana como para a sociedade
portuguesa e tantas outras acorrentadas às regras de um capitalismo
global sem regras.
IN "VISÃO"
27/07/12
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