Histórias mal contadas
Infelizmente, as histórias mal contadas abundam, cada vez mais, no jornalismo português. Não apenas devido à crescente ‘proletarização’ profissional, à escassez dramática dos meios humanos e técnicos que deveriam assegurar o rigor da actividade jornalística.
Mas também porque – uma coisa está ligada à outra – os padrões deontológicos da imprensa entraram em degradação acelerada, minando a relação de confiança entre produtores e consumidores da informação.
Se assim não fosse, provavelmente o ministro Miguel Relvas teria sido já obrigado a pedir a demissão ou a ser demitido depois das suas inqualificáveis tentativas de chantagem contra uma jornalista do Público e o próprio jornal.
No entanto, as ligações perigosas entre um ministro e um ex-espião – que, tanto quanto se sabe, partilham uma obsessão mórbida pela vida privada de cidadãos ‘desalinhados’ – não constituíam apenas uma história com indiscutível relevância informativa.
É que, atrás dessa história, emergiu outra de contornos nebulosos: a da forma como o Público geriu o assunto, após um comunicado do Conselho de Redacção (CR) do jornal que acusava a editora da secção Política (estranhamente não identificada) e dois membros da Direcção editorial (onde estariam os outros?) de parecerem intimidados com as pressões do ministro.
Claramente desautorizada, a Direcção do Público acabou por ir a reboque do CR, denunciando finalmente essas pressões em termos tão vigorosos quanto tardios (a directora do jornal referiu até um pedido de desculpas apresentado por Relvas, mas que o próprio não confirmou). Ora, porque é que, perante um assunto de tal gravidade, os responsáveis editoriais do Público não se terão reunido, em tempo oportuno, com o órgão representativo dos jornalistas para esclarecer a situação? É um mistério que acaba por fragilizar a imagem do jornal e, indirectamente, favorecer a ‘vitimização’ do todo-poderoso Relvas ou a sua protecção – embora manifestamente desajeitada – por Passos Coelho.
Os jornais não devem ser protagonistas das suas próprias histórias, mas têm um dever de lealdade e transparência para com os seus leitores. É assim que se dão ao respeito e cortam cerce as tentações indecorosas de abuso do poder.
Desconheço os motivos que levaram a editora da Política e a Direcção do Público a reagir tardiamente às interferências intoleráveis de Miguel Relvas. Admito que o follow-up não publicado da notícia sobre a audição parlamentar do ministro, a propósito das suas ligações ao ex-espião Silva Carvalho, não correspondesse a parâmetros editoriais correctos.
E é também possível que o CR do Público tivesse pecado por precipitação e corporativismo no seu comunicado. Mas a vida na redacção de um jornal é de uma natureza extremamente sensível e a responsabilidade de quem o edita e dirige impõe uma atenção permanente aos focos potenciais de crise de autoridade e confiança. Uma confiança que é também o seu maior capital junto dos leitores e da opinião pública.
A mal contada história interna do Público prejudicou a história sobre as ligações entre o ministro e o ex-espião. E quem ficou a ganhar com isso foram infractores da liberdade de informação, políticos que julgam impunes a sua mitomania e os seus insuportáveis abusos, como Miguel Relvas. É tanto mais difícil exigir transparência na vida pública quanto somos pouco transparentes nos processos internos do trabalho jornalístico.
IN "SOL"
28/05/12
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