26/12/2011

CRISTINA CASALINHO



O lado negro da força

Nas últimas décadas, uma das principais forças propulsoras da actividade económica mundial foi, consensualmente, a globalização. Progrediu em duas frentes: no mercado de mercadorias e serviços e no mercado de capitais. Muito embora percepcionada maioritariamente de forma positiva, a actual turbulência tende a ter evidenciar a dualidade deste fenómeno.

Comecemos pela vertente dos bens. Nas economias avançadas, os consumidores ficaram deliciados quando puderam adquirir t-shirts, ecrãs de plasma, computadores portáteis ou telemóveis a preços crescentemente mais baixos, descurando suas implicações. A deslocalização da produção física para as economias emergentes, mantendo, nas economias avançadas, o trabalho maioritariamente intelectual, promoveu a queda de preços do produto final em resultado de menores custos de produção, sobretudo ao nível do trabalho. Como resultado, o preço do produto final caiu, arrastando a remuneração dos factores produtivos nas economias desenvolvidas.

Se se vende o mesmo bem a um preço inferior ao do passado, não se podem continuar a remunerar os factores produtivos da mesma forma, a menos que, aquilo que normalmente se designa na gíria económica por produtividade total dos factores produtivos (capital e trabalho) tenha aumentado muito significativamente: ou seja, se se consegue fazer mais com menos. Contudo, as estatísticas sugerem que, nos últimos anos, embora se consiga fazer muito mais que no passado, necessita-se praticamente do mesmo para obter cada unidade. Por conseguinte: os preços baixos do produto final sobem na cadeia produtiva, contagiando lucros e salários. Efectivamente, nos últimos anos, a remuneração do factor capital, considerando a evolução das taxas de juro ou os ganhos médios dos principais índices bolsistas mundiais, tem declinado. Pelo lado dos salários, nas economias desenvolvidas, os progressos têm sido limitados e as quedas tendencialmente agravar-se-ão, porque o impacto do abaixamento de preços do produto final induzido pela globalização ainda não se encontra totalmente reflectido no rendimento do factor trabalho.

Do lado do mercado de capitais: associado ao deslocamento de unidades fabris estiveram fluxos de capital, primeiramente sob a forma de investimento directo. As economias, para suportar o crescimento à custa de exportações ou para colmatar falta de poupança face às necessidades de investimento, favoreceram a intensificação de fluxos de capitais e uma grande interconectividade de sistemas financeiros. Como consequência, reforçaram a volatilidade dos mercados de capitais, acentuando a tendência esquizofrénica e de comportamento de manada dos investidores. A livre circulação de capitais deveria assegurar a sua melhor alocação; porém, como a crise da dívida subprime nos EUA ou a crise europeia ilustram, pode intensificar comportamentos disfuncionais, geradores de bolhas e explosões destrutivas.

No mundo desenvolvido, os rendimentos de capital e de trabalho encolhem. No seu contraponto, nas economias emergentes, significativas camadas da população escapam anualmente à armadilha da pobreza endémica, alcançando serviços mínimos de saúde, educação e justiça, que ainda podem ser postos em causa. Ao mundo actual, apresentam-se duas alternativas para superar este aparente predomínio do lado negro da globalização: ou se regressa ao passado, impondo-se proteccionismo sob a forma de barreiras comerciais e controlo de capitais; ou se opta por uma solução mais cooperativa, exigindo maior vigilância nas práticas produtivas e nos fluxos de capitais, com cedências mútuas.

Finalmente, uma vez que a inovação é o principal dínamo da produtividade total dos factores é também a única forma de assegurar aumentos sustentáveis de rendimento dos factores de produção. Apesar dos progressos tecnológicos recentes, a produtividade tem crescido relativamente pouco no último quartel. Os grandes saltos de produtividade tendem a estar associados a mudanças de paradigma tecnológico: a máquina a vapor no séc. XVIII ou o motor de combustão interna no séc. XIX. Por enquanto, as novidades tecnológicas dos sécs. XX-XXI ainda não produziram o salto de produtividade proporcionado pelos exemplos de épocas passadas. Partindo de níveis tecnológicos mais altos, inovar revolucionariamente pode ser mais difícil; porém, viver nos tempos de maior qualificação da força de trabalho mundial dará certamente frutos.

Boas Festas.


Economista-chefe do Banco BPI


IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
22/12/11

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