20/08/2011

AVELINO DE JESUS



O capital do imposto extraordinário

No debate, na Assembleia da República, sobre a sobretaxa extraordinária de IRS, o senhor ministro das Finanças lançou um desafio de grande relevância para a clareza da política económica do novo Governo.

O desafio, em jeito de provocação, negava o interesse da dicotomia capital/trabalho nas economias actuais e punha em dúvida a sua importância mesmo para as economias do século XIX.

Chamo desafio porque julguei que muitos pegariam no mote para analisar a nova política económica sob a rica perspectiva proposta.

Erro meu. O desinteresse foi geral. O keynesianismo sufocante castra à nascença qualquer iniciativa na melhor perspectiva da economia política clássica.

Sob risco de isolamento, tomarei o mote.

Julgo que o objectivo do senhor ministro das Finanças seria aprofundar o esclarecimento da natureza do novo imposto que ultrapasse as estafadas - e sempre recorrentes - análises em termos de equidade; para estas os documentos fornecidos pelo Governo são mais que suficientes e insistir no tema por este lado torna-se fastidioso e pouco esclarecedor para a resolução dos nossos problemas.

Infelizmente, como acima refiro, o desafio não foi aceite. Em seu lugar multiplicaram-se as críticas ao facto de ficarem isentas do imposto extraordinário os juros e os dividendos. Parece que as justificações apresentadas para aquelas isenções não foram convincentes para a esmagadora maioria dos comentadores. Até muitos analistas da área do Governo não se coíbem de, publicamente, lamentar aquelas isenções. Aqueles que se não atrevem a tanto - e quando lhes competia uma enérgica defesa da medida - ficam-se por umas envergonhadas justificações baseadas em alegadas dificuldades técnicas de implementação.

Nem as críticas de uns, nem a patente vergonha manifestada por outros têm razão de ser.

Vejo quatro fortes motivos para a defesa da medida tal como formulada e apresentada.

Primeiro. Não estamos perante um cataclismo, uma desgraça nacional, cujos custos haverá que repartir com a maior justiça possível. Estamos, antes, perante a necessidade de corrigir uma errada política económica que nos últimos anos nos tem afastado do crescimento e nos conduziu à divergência real da União Europeia. A equidade, não sendo um objectivo de menor importância, não é, seguramente, na actual situação, o principal objectivo imediato e de curto prazo da política económica. O principal objectivo deverá ser o de provocar o crescimento da riqueza no médio e longo prazo. É lamentável que, com frequência superior à que desejaríamos, a equidade de curto prazo e o crescimento sejam contraditórios. Mas esta é a realidade que defrontamos no momento presente.

Segundo. A "insinuação" do senhor ministro das Finanças é na verdade uma cristalina evidência: a contradição entre o capital e o trabalho é apenas uma aparência. No médio e longo prazo, a equidade social depende do crescimento. As medidas de crescimento que no imediato firam a equidade, no fundo, poderão, como é o caso, criar condições para a sua melhoria. Mas, para os empedernidos ouvidos do keynesianismo reinante, este argumento não conta. Para aqueles, só existem o imediato e o curto prazo. As condições para o progresso e o crescimento escapam-lhes1.

Terceiro. Considerando os media que temos, doutrinados num igualitarismo cego, eficazes propagandistas de falsos lugares comuns junto dos eleitores, esta medida poderá ser entendida como manifestação de vontade dos novos poderes públicos de não se orientar por eleitoralismo fácil e atraente, mas trágico para os interesses profundos do País, como a nossa história recente tem evidenciado.

Quarto. Embora alguns ainda não se tenham dado conta, e muitos não gostem do termo, os portugueses tentam há muito erguer uma economia capitalista contra a vontade - e perante o boicote - das suas elites. Ora, numa economia capitalista ou que o pretende ser, a resolução dos problemas de crescimento está na aceleração da acumulação de capital. É esta que permite o aumento do emprego e a melhoria dos salários. Num contexto em que os capitais estrangeiros se sentem acossados e não afluem e que o escasso capital português se põe ao fresco nos centros que lhe são amenos, dar um sinal - por pequeno que seja - de que se pretende inverter a situação deve ser saudado.

Este pequeno sinal, quantitativamente, sem importância, poderá contribuir para a criação da confiança necessária para a fluidez da acumulação capitalista.

1 Na verdade, Keynes deu o impulso essencial ao considerar que poderia dispensar uma teoria do capital, por irrelevante. Modernamente, em geral, estuda-se o capital como simples capítulo da teoria financeira. Mas a teoria do capital é vista como parte esotérica e irrelevante da ciência económica. Nem sempre foi assim. Na história do pensamento económico, há inúmeros e extensos volumes sobre a teoria do capital. Actualmente, a esmagadora maioria, evita os intrincados desenvolvimentos técnicos e filosóficos que a história da ciência produziu. O capital tornou-se um mero agregado da distribuição de rendimento, deixando de ser analisado enquanto processo e relação social conforme propuseram os melhores cultores da ciência económica (por portas travessas, Karl Marx incluído).



Economista e professor do ISEG

IN "JORNAL DE NEGÓCIOS"
16/08/11

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