A democracia
é autofágica?
Muito se tem escrito e dito sobre o escândalo WikiLeaks. O ruído é tão grande que a páginas tantas as pessoas têm a cabeça em água, já não sabendo bem o que pensar.
Ora a primeira coisa a dizer é que o WikiLeaks não difere nada de outros escândalos políticos a que assistimos no passado.
Em que consistiu o Watergate, tão celebrado por jornalistas, comentadores e simples cidadãos em todo o mundo?
Na entrega a um jornal de grande tiragem de documentação secreta sobre factos ocorridos numa campanha para a Presidência dos EUA
O resto foi a bola de neve.
No Wikileaks passou-se aproximadamente o mesmo.
Alguém se apropriou ilicitamente de toneladas de material diplomático e, depois de uma primeira hesitação, entregou-as a quatro grandes jornais e a uma revista de vários países do mundo.
E os jornais trataram o material com os seus critérios e têm-no publicado da forma como entendem.
Por cá, ainda há bem pouco tempo tivemos um caso semelhante.
O SOL conseguiu obter em primeira mão documentação do processo Face Oculta, os seus jornalistas seleccionaram aquilo que consideraram de interesse público, esse material foi dividido em lotes e publicado com o enquadramento jornalístico que se considerou necessário para a compreensão do leitor.
Tal como sucedeu com o WikiLeaks, houve quem se indignasse com a publicação.
Mas será possível pedir aos jornais que têm acesso a documentação relevante para não a publicarem?
Não é possível: o papel dos jornais é publicar informação.
Podem discutir-se depois os critérios de selecção e publicação.
Pode questionar-se se determinado facto tinha ou não interesse público.
Pode questionar-se se o tratamento e o enquadramento jornalísticos foram bem ou mal feitos.
Mas essa é outra história.
No que respeita ao caso Face Oculta, por exemplo, o SOL seguiu um critério diferente do que tem sido usado no WikiLeaks: de um modo geral, não usámos opiniões de umas pessoas sobre outras, porque nos pareceu coscuvilhice de pouco interesse para o entendimento dos factos.
Mas, se é possível discutir isto, já parece impossível pedir aos jornais que não publiquem nada.
É contra a sua natureza.
Até aqui não parece haver grandes dúvidas.
E as opiniões que se têm manifestado a favor e contra a divulgação dos documentos têm mais que ver com as simpatias ou antipatias políticas dos opinadores do que com outras questões.
Alguém contestou a publicação pelo Washington Post dos documentos do caso Watergate?
Ninguém. E porquê?
Porque Nixon era um mal amado - e a esquerda (que é predominante na imprensa mundial) o detestava.
Tudo o que fosse para derrubar Nixon (ou, mais tarde, Bush) era legítimo.
E o mesmo aconteceu em Portugal: levantou-se a questão das violações do segredo de Justiça no caso Face Oculta, mas ninguém as condenou no caso BPN.
Porquê? Por razões políticas.
Há mais duas conclusões a tirar.
A primeira é que, com o desenvolvimento brutal dos meios tecnológicos, escândalos como o WikiLeaks serão cada vez mais frequentes.
A tecnologia serve para o bem e para o mal.
Estamos já na sociedade do Big Brother: somos vigiados pelas câmaras de vídeo nas ruas e nos estabelecimentos, sabem onde estamos através dos telemóveis (que são autênticas pulseiras electrónicas), controlam o que compramos através dos cartões de crédito, etc.
Os emails, as chamadas telefónicas e os sms são interceptados.
Já nada é secreto.
Bramar contra isto é lutar contra moinhos de vento.
Não tem qualquer utilidade.
A segunda conclusão a tirar é que mais uma vez se prova que as democracias são autofágicas.
Elas transportam dentro de si os instrumentos da sua própria destruição.
E colocam os regimes democráticos em situação de desigualdade em relação aos outros.
Porque é evidente que um caso destes, que atinge os Estados Unidos e os seus aliados, não poderia acontecer no Irão, na China ou mesmo na Rússia.
Assim, a nossa civilização vai-se fragilizando, corroendo por dentro, ficando à mercê dos seus inimigos.
E nós somos agentes dessa corrosão.
A transparência, que é um dos ex libris do mundo ocidental, acaba por voltar--se contra o nosso modo de vida, dando sucessivas cartas a quem o ameaça.
E isto não tem saída.
Não podemos impor as nossas regras aos outros - e não podemos travar este progresso que nos vulnerabiliza cada vez mais.
A democracia está à mercê dos próprios mecanismos que criou.
IN "SOL"
27/12/10
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