O totalitarismo invisível
A mão invisível do mercado transforma-se, quase sem darmos por isso, numa espécie de totalitarismo invisível.
Já vão muito longe esses tempos de euforia em que vimos cair o Muro de Berlim, acabou a Guerra Fria e Francis Fukuyama anunciou o Fim da História , profetizando a extensão da democracia liberal e do mercado livre a todos os cantos do planeta.
Afinal, a globalização do conceito fundador da economia moderna, essa mão invisível do mercado que Adam Smith prescrevera como antídoto aos malefícios da intervenção estatal e do poder dos monopólios, está a conhecer uma metamorfose inquietante.
A virtuosa mão invisível transforma-se quase sem darmos por isso - e suscitando uma acomodação fatalista à falta de alternativas - numa espécie de totalitarismo invisível.
O terramoto financeiro de 2008, que se propagou dos Estados Unidos para o mundo inteiro e cujas réplicas ameaçam hoje fazer implodir a União Europeia e lançar na bancarrota as economias mais vulneráveis - como a portuguesa -, deveria ter constituído o epitáfio da mão invisível , o sinal de que esse conceito naïf e benevolente do mercado se tornara obsoleto e insustentável.
Foi, aliás, nesse sentido que se pronunciaram muitos responsáveis políticos e económicos um pouco por toda a parte, tirando as inevitáveis conclusões do desastre a que conduzira a invisibilidade predadora dos mercados e constatando as consequências nefastas da desregulação neo-liberal dos anos 80 (que, promovida por Thatcher e Reagan, seria também adoptada como via única - ou pensamento único - pelos herdeiros da social-democracia europeia ou pelo Partido Democrata nos Estados Unidos).
Entretanto, o estado de impotência a que chegaram os actuais governos europeus (nomeadamente os de inspiração social-democrata) e a Administração Obama para cortar o nó-górdio da crise actual é revelador do peso terrível de um legado que deixou os mercados completamente entregues a si mesmos.
Isso explica, de resto, a clara desconfiança que os eleitores vêm manifestando - como se verificou com a recente e expressiva derrota dos democratas americanos - sobre a capacidade das chamadas lideranças progressistas ou de esquerda em promoverem caminhos alternativos à deriva imparável dos mercados financeiros.
Castigar os culpados pelas promessas não cumpridas e favorecer aqueles que podem cobrar esse castigo é uma tentação cíclica dos eleitorados flutuantes - e Obama está a pagar duramente o respectivo preço. Aliás, o Presidente americano aparece agora em plano cada vez mais inclinado de insignificância política, rendendo-se à imposição republicana de não taxar os contribuintes mais ricos (ou, noutro plano, renunciando a influenciar Israel para desistir da construção dos colonatos).
Os projectos de regulação financeira solenemente anunciados nos dois lados do Atlântico - e timidamente encetados nos Estados Unidos - não chegaram para desanuviar o ambiente e lançar uma ponte sólida para a saída da crise.
Pelo contrário, alguns dos principais agentes responsáveis pelos desmandos da economia de casino exibem hoje uma impunidade total e até uma prosperidade obscena e sem precedentes (como é o caso do Goldman Sachs e outros bancos especializados em produtos financeiros tóxicos ). Os contribuintes comuns e os desempregados pagam os custos da crise enquanto muitos dos que estiveram na sua origem não cessam de enriquecer à custa dela.
Inside Job (A Verdade da Crise), um documentário americano recentemente estreado em Portugal, mostra como um mesmo conjunto de personagens e interesses funcionam em circuito fechado entre Wall Street, as grandes faculdades de economia e a Administração federal. E a verdade é que Obama se prestou candidamente a tornar-se refém desse circuito, nomeando para cargos governativos ou escolhendo como consultores mais influentes algumas figuras ligadas à oligarquia do poder financeiro e académico.
O século XX foi marcado pelo horror bem visível do totalitarismo nazi e estalinista. Desde então, o reino da democracia e do mercado livre ter-se-á expandido pelo mundo, apesar de muitas excepções notórias, como a inenarrável Coreia do Norte, o Irão fundamentalista, as ditaduras africanas ou, com maior relevância planetária, a China, que conjuga a herança totalitária do comunismo com o capitalismo selvagem e predador (além de ser o paraíso das deslocalizações e grande banco credor do consumismo ocidental).
Mas o eventual progresso dos direitos humanos e da liberdade de expressão tem hoje como contraponto um poder difuso, um totalitarismo oculto, que nenhuma instância com legitimidade democrática parece em condições de combater. Pior do que isso, é um poder a que quase todas essas instâncias se rendem e com o qual todas pactuam como se fosse uma fatalidade insuperável (ou até uma realidade benigna, quando se fala, eufemisticamente, de economia de mercado ).
A retórica do anticapitalismo está fora de moda e as utopias anticapitalistas do século passado vacinaram-nos contra o custo tenebroso dos totalitarismos visíveis. Mas a rendição pura e simples a este novo totalitarismo invisível dos mercados - tão apaticamente interiorizado por múltiplos governos e centros do poder, como a Comissão Europeia ou o FMI - tornou-se verdadeiramente insuportável.
Prescreve-se uma austeridade implacável aos países endividados, sobretudo se forem fracos e periféricos, e apontam-se como alvos principais dos sacrifícios os cidadãos mais desprovidos de recursos e poder, sujeitos a uma espiral crescente de iniquidades.
Tudo isso é feito em nosso nome, em nome da salvação de uma moeda, da sobrevivência de uma União Europeia reduzida a mortalha dos ideais que a viram nascer.
Tudo isso é feito porque, dizem-nos, não existem alternativas - e, apesar das sagradas liberdades democráticas de que desfrutamos, de nada nos servirá lutar contra o totalitarismo invisível dos mercados. Não será essa uma razão suficiente para nos revoltarmos?
IN "SOL"
10/12/10
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