27/11/2010

PAULO FERREIRA


Ponham música!

1.Quinta-feira da semana passada apanhei em Lisboa um curioso e paradoxal taxista. Na viagem entre o edifício do "Diário de Notícias" e o aeroporto, entabulámos uma conversa que começou com as queixas dele sobre a indiferença que, por estes dias, nota nos colegas e terminou com um apelo aos órgãos de comunicação social, em geral, e às emissoras de rádio, em particular: "Já chega de más notícias, pá. Ponham música!".
Dizia ele que andava irritado com os taxistas com quem partilha as praças. Porquê? Porque, apesar da crise em que vivemos, "só falam da Casa dos Segredos e de coisas dessas que não interessam nada a ninguém". Contrapus, com jeitinho: "Pode ser uma forma de esquecer os problemas". Aquiesceu: "Também é verdade. A gente vê a televisão e ouve a rádio e é só crise para cá e crise para lá. Ponham música, pá, para animar a gente".
Lembrei-me desta animada conversa quando, no sábado passado, li no "Expresso" uma entrevista da presidente do Banco Alimentar Contra a Fome. Isabel Jonet deve ser das pessoas que melhor conhece, hoje, as consequências da crise no tecido social. Por isso, os alertas que deixa devem ser levados a sério. "Neste momento existe o maior risco de implosão social em Portugal desde o 25 de Abril. Há uma tensão latente, muito perigosa. Se surgir uma força política a manipular os pobres vai correr mal".
Os dados de estudo feito pela Universidade Católica ontem conhecidos sustentam a preocupação de Isabel Jonet. Só para citar dois exemplos: metade das pessoas que recorrem a instituições de solidariedade social vive com menos de 250 euros por mês; e um quinto dos que são ajudados por essas mesmas instituições não tem o que comer pelo menos uma vez por semana.
O retrato é terrível. E, creio, tende a agravar-se com a muito provável subida do desemprego para a casa dos 11% no próximo ano.
Francamente, não sei se haverá, ou não, explosão ou revolta social. Mas sei, isso sim, que há um elevado e ancestral risco de indiferença e de apatia dos portugueses em relação ao seu futuro. Por isso, o melhor que podemos fazer é pedir que não nos dêem música...
2. Música para os ouvidos de meio mundo, ou talvez mesmo para o mundo inteiro, foram as decalarações do Papa: pela primeira vez, um chefe da Igreja Católica admitiu o uso do preservativo para minorar os efeitos do vírus da sida. Apostei singelo contra dobrado em como alguém viria, nos dias seguintes, amenizar o que, nas palavras do nosso bispo das Forças Armadas, tinha sido "um estrondo". Bastou um dia: anteontem, o porta-voz do Vaticano afirmou que não há nada de "revolucionário" no que o Papa disse. Ou seja: foi apenas música para os nossos ouvidos... 

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
23/11/10

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