21/10/2010

CATARINA CARVALHO



Crise? Qual crise?

Este título não é uma provocação, nem pretende ofender os leitores que, ajuizadamente, já fizeram as contas de quanto vão pagar mais de IRS para o ano. Deriva, não das conclusões que se tiram ouvindo economistas ou mesmo ex-ministros perorar sobre o Orçamento, mas das que se tiram na vida do dia-a-dia, essa em que se baseia - e tantas vezes trama - a economia pura.
No dia em que o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, ia entregar a pen com o Orçamento na Assembleia da República fui a um centro comercial, ao Colombo, em Lisboa. Coisa banal, precisava de um champô, o que normalmente me demora uns minutos, compra feita e lá vou com a esperança renovada no meu elixir capilar. Desta vez, a coisa foi mais grave e 1) quase me deu uma taquicardia, 2) permitiu-me ver como o país real está longe de perceber o estado da nossa Economia. A menina da loja ouviu as minhas queixas - normais para quem tem, digamos, dois fios de cabelo, e eu tenho vários - e tirou um champô da prateleira. Não concordei com a escolha, expliquei-lhe porquê. Ela recolocou o produto na prateleira e disse-me: "Precisa é de ampolas". Concordei e fiquei à espera que mas desse. Não tinha, respondeu...
Esta menina não era empregada numa loja de vão de escada, era a cara da sucursal de uma famosa loja inglesa de produtos para corpo, que faz gala em não fazer testes em animais. Simplesmente mandou-me passear. Recusou-se vender. Claramente, a crise não chegou à cabeça desta menina.
E não servia de desculpa que Teixeira dos Santos só entregasse a pen com os números do Orçamento tarde, naquela noite - os dados gerais, que já demonstravam o descalabro, estavam a ser gritados pelas rádios e TV desde a noite anterior. Mesmo assim, para ela, vender ou não vender era igual. Mas o que lhe era indiferente a ela, não era certamente para os patrões dela. E também não era para mim, que preciso de negócios prósperos que empurrem Portugal para fora da crise.
Respirei fundo e, de mãos vazias, dei uma volta para espairecer. Foi pior. A crise também não tinha chegado aos ouvidos da menina da loja seguinte, onde entrei para apreciar uns candeeiros. Que custassem cerca de 500 euros e eu tivesse mostrado interesse neles (pelo menos até ver a etiqueta) não moveu a empregada que nem bom dia me deu e continuou a preencher uns papéis. Saí como entrei, sem nenhum contacto visual com quem, não tarda nada, vai ansiar por clientes que lhe entrem na loja.
No dia seguinte, fui ao Chiado, apenas para confirmar que a crise não chegou, também, ao coração de um empregado de uma das lojas mais 'fashion', na Rua Garrett. Estava eu a apreciar uns sapatos na montra e ele resolveu fechar-me a porta na cara sem me perguntar se ainda queria entrar. Ele nem explicou, mas eu percebi que já eram nove e meia da noite - a hora de fecho estava escrita na porta, é verdade.
Assim se mostra - com grande margem de erro, evidentemente - como as pessoas da rua ainda não interiorizaram que a economia é da conta de todas e de cada uma delas. E que em vez de vociferarem junto dos jornais nas bancas contra o corte de salários e aumento dos impostos, faziam melhor em pôr mãos à obra e fazerem o que lhes cabe.
Os meninos e meninas das lojas, por exemplo, são a guarda avançada do consumo privado que representa cerca de 60% do nosso PIB. E se passa muito por um bom empregado as receitas de uma loja, também passam os impostos de um país. É assim que se começa a construir a prosperidade ou a crise da economia nacional. Não há quem dê a estas pessoas umas aulas de economia?

IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
17/10/10

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