Crise? Qual crise?
Este
título não é uma provocação, nem pretende ofender os leitores que,
ajuizadamente, já fizeram as contas de quanto vão pagar mais de IRS para
o ano. Deriva, não das conclusões que se tiram ouvindo economistas ou
mesmo ex-ministros perorar sobre o Orçamento, mas das que se tiram na
vida do dia-a-dia, essa em que se baseia - e tantas vezes trama - a
economia pura.
No dia em que o ministro das Finanças, Teixeira
dos Santos, ia entregar a pen com o Orçamento na Assembleia da República
fui a um centro comercial, ao Colombo, em Lisboa. Coisa banal,
precisava de um champô, o que normalmente me demora uns minutos, compra
feita e lá vou com a esperança renovada no meu elixir capilar. Desta
vez, a coisa foi mais grave e 1) quase me deu uma taquicardia, 2)
permitiu-me ver como o país real está longe de perceber o estado da
nossa Economia. A menina da loja ouviu as minhas queixas - normais para
quem tem, digamos, dois fios de cabelo, e eu tenho vários - e tirou um
champô da prateleira. Não concordei com a escolha, expliquei-lhe porquê.
Ela recolocou o produto na prateleira e disse-me: "Precisa é de
ampolas". Concordei e fiquei à espera que mas desse. Não tinha,
respondeu...
Esta menina não era empregada numa loja de vão de
escada, era a cara da sucursal de uma famosa loja inglesa de produtos
para corpo, que faz gala em não fazer testes em animais. Simplesmente
mandou-me passear. Recusou-se vender. Claramente, a crise não chegou à
cabeça desta menina.
E não servia de desculpa que Teixeira dos
Santos só entregasse a pen com os números do Orçamento tarde, naquela
noite - os dados gerais, que já demonstravam o descalabro, estavam a ser
gritados pelas rádios e TV desde a noite anterior. Mesmo assim, para
ela, vender ou não vender era igual. Mas o que lhe era indiferente a
ela, não era certamente para os patrões dela. E também não era para mim,
que preciso de negócios prósperos que empurrem Portugal para fora da
crise.
Respirei fundo e, de mãos vazias, dei uma volta para
espairecer. Foi pior. A crise também não tinha chegado aos ouvidos da
menina da loja seguinte, onde entrei para apreciar uns candeeiros. Que
custassem cerca de 500 euros e eu tivesse mostrado interesse neles (pelo
menos até ver a etiqueta) não moveu a empregada que nem bom dia me deu e
continuou a preencher uns papéis. Saí como entrei, sem nenhum contacto
visual com quem, não tarda nada, vai ansiar por clientes que lhe entrem
na loja.
No dia seguinte, fui ao Chiado, apenas para confirmar
que a crise não chegou, também, ao coração de um empregado de uma das
lojas mais 'fashion', na Rua Garrett. Estava eu a apreciar uns sapatos
na montra e ele resolveu fechar-me a porta na cara sem me perguntar se
ainda queria entrar. Ele nem explicou, mas eu percebi que já eram nove e
meia da noite - a hora de fecho estava escrita na porta, é verdade.
Assim
se mostra - com grande margem de erro, evidentemente - como as pessoas
da rua ainda não interiorizaram que a economia é da conta de todas e de
cada uma delas. E que em vez de vociferarem junto dos jornais nas bancas
contra o corte de salários e aumento dos impostos, faziam melhor em pôr
mãos à obra e fazerem o que lhes cabe.
Os meninos e meninas das
lojas, por exemplo, são a guarda avançada do consumo privado que
representa cerca de 60% do nosso PIB. E se passa muito por um bom
empregado as receitas de uma loja, também passam os impostos de um país.
É assim que se começa a construir a prosperidade ou a crise da economia
nacional. Não há quem dê a estas pessoas umas aulas de economia?
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
17/10/10
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