01/09/2010

MANUEL CATARINO

 

 

 

 A mentira


Apanhado a mentir, António Lobo Antunes ficou ainda mais rosadinho: não por vergonha, mas desfeito em raiva


O escritor António Lobo Antunes cumpriu uma comissão em Angola – como alferes médico da Companhia 3313 do Batalhão de Artilharia 3835. Recordou, 40 anos depois, esses tempos na Guerra Colonial: o batalhão sofreu 150 baixas; os soldados tinham por hábito matar indiscriminadamente velhos, mulheres e crianças; havia um sistema de pontuação que permitia a quem matasse mais ser transferido para outra unidade numa zona mais calma. Ele – que nunca combateu, era o médico da companhia – até "tinha talento para matar".
O que conta António Lobo Antunes – um extraordinário e impressivo testemunho sobre a condução da guerra – merece toda a atenção e estudo: ele não é um tipo qualquer e o assunto é demasiado sério para passar ao lado dos historiadores da Guerra Colonial.
Mas, como já se viu, o relato – nas mais benevolentes palavras – não passa de uma fantasia, um delírio, uma obsessão. Mentiu – e fê-lo sem um pingo de pudor: aproveitou--se do estatuto de escritor para denunciar factos que não são verdadeiros. Os gestos definem o carácter de cada um. A mentira é sempre desprezível. Mas uma mentira conscientemente repetida por alguém com elevadas responsabilidades públicas roça a canalhice. Apanhado a mentir, António Lobo Antunes ficou ainda mais rosadinho: não por vergonha, mas desfeito em raiva.
Agarrou-se a uma desculpa – que também ela é reveladora do carácter. Explicou--nos – a todos – que falara "metaforicamente". Não fomos capazes de perceber o alcance das suas sábias palavras: "Qualquer leitura no sentido literal do que digo é abusiva." A culpa é nossa – que levamos à letra o que Lobo Antunes diz – como se não existisse diferença entre um testemunho e a ficção.
O Batalhão de Artilharia 3835 sofreu mesmo 150 baixas? Não. Lobo Antunes queria-nos dizer outra coisa. Os soldados portugueses matavam indiscriminadamente velhos, mulheres e crianças? Pode ter acontecido, mas não era prática instituída. Quando disse o contrário, Lobo Antunes estava a falar por metáforas. Havia algum sistema de pontuação que permitia a quem mais matasse ser transferido para uma zona onde a guerra era menos intensa? Não. Lobo Antunes estava apenas a delirar.
O escritor apela, por fim, à nossa comiseração. Que o desculpemos – porque "ninguém desce vivo da cruz". Só por isso, está desculpado da minha parte. Mas sempre lhe digo que conheço muitos homens que derramaram sangue na cruz da guerra e não mentem – nem por metáforas. 

in "CORREIO DA MANHÃ"
30/11/10

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