Ensaio sobre a cegueira
Terá Cavaco sido afetado pela cegueira branca do mais genial livro de Saramago?
Ora, Saramago nunca escreveu sobre cegos, mas sobre a natureza humana. E o seu Evangelho revela-nos um homem profundamente admirador de Jesus Cristo, para muitos o primeiro "marxista" da História. É verdade que a cruzada antirreligiosa de Saramago roçou, muitas vezes, as raias da desonestidade intelectual, que não está ausente do mesmo Evangelho. Ao denunciar os crimes da religião, nunca relativiza os acontecimentos à luz do seu tempo, nem reflete sobre o papel decisivo do Cristianismo no advento do Humanismo no Ocidente e de todas as ideias políticas ditas libertadoras, incluindo o socialismo. E nunca admite que as ideologias do século XX, uma das quais preconizava, mataram muito mais gente, em muito menos tempo, do que 2 mil anos de religiões. Se calhar, precisamente, porque não tinham um princípio religioso-moral que as travasse. Mas esse tipo de dialética está normalmente ausente do discurso dos Sousa Laras desta vida, que nunca elevam a discussão a uma argumentação racional. A maior parte dos que o criticam nunca leram um livro seu: o homem era um comuna e um ateu furioso e isso bastava.
Ler um livro de Saramago é como comer queijo da serra: qualquer queijo consumido a seguir não sabe a nada. Ora, foi esta genialidade que o tornou célebre mundialmente e lhe granjeou um merecido Nobel, distinção que os seus detratores nunca perdoaram. O funeral "de Estado", o luto nacional, o avião que recolheu o seu corpo, em Lanzarote, foi o mínimo que podíamos fazer pela sua memória. A ausência do Presidente da República fez de Cavaco Silva um homem afetado pela cegueira branca do mais genial dos livros de Saramago.
in "VISÃO" 24/06/10
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