Um momento de lucidez
1. No meio de revelações surpreendentes e duma precisão estonteante, do género "a Grécia tem uma dívida pública de 1000%" ou " a Irlanda tem uma dívida bruta de 1000%"; enquanto ouvíamos, incrédulos, que os sacrifícios que vamos ter de suportar se devem inteiramente à crise internacional e à necessidade de defendermos o euro, pois o Governo tinha feito as reformas estruturais adequadas; que o mundo tinha mudado em três semanas e, presume-se, até essa altura estava tudo bem; que, afinal, as contradições constantes entre ministros, secretários de Estado e o próprio primeiro-ministro eram fruto da nossa delirante imaginação, José Sócrates teve, na entrevista que concedeu à RTP, um momento de rara lucidez em que resumiu o falhanço de uma governação e, no fundo, o fracasso duma inteira geração.
Tentando provar que não havia insensibilidade social no plano de austeridade, argumentou dizendo que um milhão de portugueses não seriam afectados pelo aumento do IRS. Estava a falar dos nossos compatriotas que recebem cerca de 500 euros mensais.
Poderia também referir que o número de famílias a quem será aumentado um ponto percentual no IRS, e que fazem parte dos três primeiros escalões (rendimento bruto anual até 17 979 euros), é de 3,8 milhões. Ou seja, famílias que têm um rendimento bruto até 1500 euros mensais.
Pois é, não havia melhor maneira de exibir o verdadeiro estado do País.
Não está em causa saber se as medidas são necessárias ou não - já aqui foi dito que, face à conjuntura, não existiria outra alternati-va -, o fundamental é percebermos que era praticamente impossível dar uma imagem mais transparente do nosso país. Vivemos numa terra em que uma quantidade significativa de pessoas tem emprego, trabalha que se desunha e mesmo assim é pobre. Em que aquilo a que chamamos classe média vive, ou melhor, sobrevive com menos de 1500 euros a distribuir pelo agregado familiar.
E, mesmo assim, dizem-nos que gastamos demais e, por muito que nos custe, é verdade. Não produzimos, como comunidade, o suficiente para que mais dinheiro possa ser distribuído de forma justa e séria.
Daqui ao discurso populista e demagógico de "os ricos que paguem a crise" vai um pequeno passo.
Em primeiro lugar, parte-se do princípio de que os tais ricos são um grupo de bandidos que obtiveram a sua fortuna por meios ilícitos e que assim sendo têm de lhes ser confiscados os bens. Em segundo lugar, assume-se que estes vampiros não criaram empregos, não criaram e distribuíram riqueza. Em terceiro lugar, será que algum destes revolucionários de pacotilha - os tais que numa altura de profunda crise lançam ou apoiam uma moção de censura que conduziria o País ao caos total e à impossibilidade de obter verbas no exterior -, pensa que os problemas do País se resolve destruindo a iniciativa privada?
Ninguém nega que temos um défice histórico de coesão social, que em Portugal a diferença entre ricos e pobres é enor-me. O mal, porém, não está em termos gente rica, está em termos tantos portugueses pobres. Acabar com os ricos só nos ia tornar, a todos, ainda mais pobres. Será que estamos tão desmemoriados que nos esquecemos dos sistemas que acabaram com os ricos?
2. Faltando quem o ajudasse a converter num mártir da verdade, da moral e dos bons costumes, o deputado Pacheco Pereira resolveu auto-imolar-se. Nesse processo, não hesitou em atentar contra os mais básicos pilares do Estado de direito e desprezar os mais sagrados direitos individuais.
Um dono da verdade é perigoso. Um dono da verdade movido por ódios pessoais e ressentimento é só assustador.
3. Numa altura em que tanto se fala, e bem, de desperdícios e de sacrifícios de todos, talvez não fosse má ideia olhar para quem acumula várias pensões. Talvez até começando pelos mais altos representantes da nação.
"DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
23/05/10
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