30/03/2010

MARIA DE LURDES VALE


Abusos sem perdão


Sabíamos que éramos diferentes e que a verdade não era para ser dita. O segredo fazia parte da família e era uma pesada cruz que tinha de ser carregada pelos adultos, pai e mãe, e por nós, filhos, inocentes, a quem ninguém explicava o que estava por detrás de tanto desconforto. Sabíamos que havia uma irmã mais velha, um anterior casamento, uma separação e uma bonita história de amor entre os nossos pais, que tiveram de enfrentar uma série de angústias e de rejeições para viverem a sua própria vida. O seu amor.

Estávamos nos finais dos anos sessenta. Em Portugal vigorava uma Concordata entre o Estado e o Vaticano que impedia que os que fossem casados pela Igreja Católica pudessem obter o divórcio civil. Por esse motivo, uma mulher ou um homem que fossem separados eram vistos como diferentes dos restantes e eram obrigados a viver a sua própria vergonha. Sim, vergonha. Era essa a palavra. E porquê? Porque os filhos que nascessem de uma segunda união eram "filhos do pecado", não podiam ser registados com o nome do pai - eram de um incógnito - e isso provocava, no dia-a-dia, uma situação com a qual era difícil viver. E conviver. Registar uma criança numa conservatória era um verdadeiro calvário. Matriculá-la na escola era admitir esse penoso erro de uma separação. Era como estar à margem de tudo e de todos. Havia sempre um dedo apontado, uma mácula que não se apagava. A sociedade e a própria família não estavam preparadas para aceitar os que percorriam caminhos sentimentais diferentes e castigavam--nos em nome de uma moral em que o parecer era mais importante que o ser. A revelação de tantos casos de pedofilia dentro da Igreja Católica e a aparente cumplicidade de quem a dirige na ocultação de tais monstruosidades não podem hoje em dia ser ignoradas por ninguém.

Não vale a pena fingir que não se passou, nem há que aceitar a desculpa de que se trata de uma campanha para denegrir o Papa ou a instituição. O Vaticano é um Estado, tem uma hierarquia e uma voz de comando. Uma voz que se faz ouvir demasiado alto quando estão em causa direitos e liberdades exigidos pelos cidadãos que elegem democraticamente os seus Governos (ainda temos bem presentes as campanhas organizadas pelos bispos contra a interrupção voluntária da gravidez e os casamentos entre pessoas do mesmo sexo). Do que se trata agora é de criticar a própria Igreja. De fazer sentir a esta instituição que todos os que, no passado, viveram situações de injustiça em nome das aparências não perdoam tanta mentira, tanto silêncio, nem serão cúmplices da vergonha. Isto, sim, é uma vergonha!

in "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
28/03/10

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