12/03/2010

JOSÉ AUGUSTO GARCIA MARQUES

Sentido de Estado

José Augusto Sacadura Garcia Marques

(Juiz Conselheiro do STJ - Jubilado)

Os governos – todos os governos – gostam do aplauso e detestam a crítica.

Os governos – todos os governos – gostariam de ter uma comunicação social mais colaborante e encomiástica.

Os governos – todos os governos – convivem mal com a liberdade de informação.

Mas só alguns governos são capazes de calar as vozes mais incómodas e mais críticas, para controlar a comunicação social, para cercear a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e informação.

Fazem-no os governos dos países do terceiro mundo. Fazem-no os governos dos regimes ditatoriais. Num e noutro caso, com a violação dos direitos fundamentais daqueles que ousam criticar os “chefes”. Utilizando, em regra, a censura como arma e os mecanismos da repressão por polícias políticas como instrumento dissuasor.

Tentam também fazê-lo, por vezes, embora por outros métodos, alguns governantes em regimes democráticos. Nesses casos, quando mais duramente atacados através do exercício do direito à livre expressão, há governantes que soltam a sua indignação, que até pode ser compreensível ou mesmo justa, transformando-a, porém, em violentas censuras públicas, com utilização de expressões pouco próprias de quem governa.

Chamo a isso falta de “sentido de Estado”! Vou dar um exemplo.

O Presidente Richard Nixon foi um político profissional, experiente e bem sucedido em muitos aspectos. Negociou a retirada das forças dos Estados Unidos durante a guerra do Vietname, aproximou o seu país da República Popular da China e viajou até Moscovo, onde deu importante impulso às negociações com a União Soviética sobre a redução do armamento. Na política interna, travou dura luta contra a inflação, mediante o controlo de preços e salários e a redução dos gastos públicos.

Apesar disso, saiu humilhado da Casa Branca, na sequência do escândalo Watergate. Um aparentemente vulgar assalto a um edifício com esse nome, ocorrido em 1972, no período da campanha eleitoral que conduziu à reeleição de Nixon, esteve na origem de um escândalo político que acabou com a resignação do Presidente dois anos depois. O mérito da descoberta da verdade, ou seja, das ligações da Casa Branca ao assalto ao edifício Watergate e da descoberta de um sistema secreto de gravações, ficou a dever-se à persistência de dois jornalistas – Bob Woodward e Carl Bernstein – e à acção determinada e corajosa do seu jornal – o Washington Post. Por trás dos investigadores, um informador anónimo – conhecido como “deep throat” (garganta funda) – cuja identidade só viria a ser conhecida trinta anos depois. Nixon indignou-se, acusou a investigação, qualificando-a como infame e falsa, insultou os investigadores e o jornal. Ficaram célebres os seus acessos coléricos e a sua propensão para a utilização de vocabulário capaz de envergonhar um estivador. Negou, negou sempre a sua implicação e as suas responsabilidades.

Mas, dois anos volvidos, pouco antes da votação, pelo Congresso, do processo de “impeachment” que sobre ele pendia, viu-se obrigado a renunciar à presidência dos EUA. Ficou célebre a frase dramática que constituiu a sua última defesa: “I´m not a crook” (Eu não sou um vigarista). Na verdade, o Congresso, os tribunais e o procurador especial nomeado haviam feito prova das ligações da Casa Branca e do envolvimento do Presidente Nixon. Que, para a pequena história, ficou conhecido como “trixie Dixie”, como “trixie Dixie”, isto é, “o Ricardinho trapaceiro”. Triste fim para um político inteligente, hábil, bem sucedido em múltiplos domínios, que não precisava do que aconteceu em Watergate para ser reeleito folgadamente contra o apagado candidato democrata George McGovern.

Faltava-lhe, porém, um atributo importante para um político: a compostura. E outro, fundamental para um líder: o sentido de Estado.

O sentido de Estado pressupõe respeito pelo cargo, sentido do dever, correcção, sobriedade, equilíbrio, ética pessoal. Em suma, o sentido de Estado implica aprumo e, sempre que necessário, capacidade de distanciamento em relação a companhias e amigos.

Respondendo à pergunta sobre “o que esperamos de um primeiro-ministro”, o jornalista Luís Marques, escreve, nas páginas do suplemento de Economia do Expresso de 6 de Fevereiro, o seguinte: “Esperamos que governe bem, claro está. Mas esperamos que também respeite a Constituição, que respeite as instituições, que não queira impor a sua vontade a tudo e a todos, que não tenha conversas inconvenientes ao telefone, que não ataque jornalistas em público, que respeite a liberdade, a diferença e as opiniões contrárias, por mais incómodas que sejam”.

Na verdade, todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. Quem o diz não sou eu; afirma-o a nossa Constituição, que garante igualmente a liberdade de imprensa.

No mínimo, exige-se de um estadista que respeite o juramento solene que proferiu no seu acto de posse e que respeite a Constituição, lei fundamental da República.

Desiludam-se, porém, os que pensam que me proponho “julgar” o nosso primeiro-ministro. Nunca o poderia fazer, desconhecendo, como desconheço, o conteúdo das escutas, o teor dos despachos produzidos e, até, qual o suporte processual em que estes foram exarados. Por outro lado, não pactuo com julgamentos de opinião pública, quando não com a usurpação da função da justiça.

No entanto, uma vez que, sobre a matéria, tenho lido e ouvido muitas incorrecções, gostaria de aqui deixar um comentário acerca do conceito de reserva da vida privada, no que particularmente diz respeito às figuras públicas. Trata-se de um conceito fluido, difuso, como resulta, desde logo, do nosso Código Civil, que estabelece que “a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”. Ou seja, este “direito ao resguardo” (diritto alla riservatezza) consente certas limitações. Assim, a notoriedade de certas pessoas faz com que não possam opor-se à divulgação de certos acontecimentos da sua vida. O interesse público sobrelevará, então, o interesse privado. São consequências do que a doutrina e os próprios media costumam designar “o custo da notoriedade”, a justificar um eventual “direito à curiosidade”, expressão sugestiva mas tecnicamente menos correcta. Mas, em qualquer caso, a compressão da privacidade relativamente a tais figuras, que, por nascimento, profissão, modo de vida, ou como consequência de acto voluntário, são figuras públicas apenas atinge os factos ou a actividade que têm que ver com a notoriedade da pessoa.

Resulta do que se disse que não será lícito a um governante invocar a privacidade para manter a reserva de conversas (ainda que privadas) que incidam sobre assuntos de Estado. Assim, ao contrário do que parece quererem fazer-nos acreditar, a faixa de protecção da vida privada das figuras públicas é bem mais estreita e vulnerável que a do cidadão comum. É bom que entendam que, ao oferecerem-se ao serviço público, os nossos políticos também se estão a expor mais. É o fatal corolário do ditado popular: “quem anda à chuva, molha-se”.

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