Sentido de Estado
José Augusto Sacadura Garcia Marques
(Juiz Conselheiro do STJ - Jubilado)
Os governos – todos os governos – gostam do aplauso e detestam a crítica.
Os governos – todos os governos – gostariam de ter uma comunicação social mais colaborante e encomiástica.
Os governos – todos os governos – convivem mal com a liberdade de informação.
Mas só alguns governos são capazes de calar as vozes mais incómodas e mais críticas, para controlar a comunicação social, para cercear a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e informação.
Fazem-no os governos dos países do terceiro mundo. Fazem-no os governos dos regimes ditatoriais. Num e noutro caso, com a violação dos direitos fundamentais daqueles que ousam criticar os “chefes”. Utilizando, em regra, a censura como arma e os mecanismos da repressão por polícias políticas como instrumento dissuasor.
Tentam também fazê-lo, por vezes, embora por outros métodos, alguns governantes em regimes democráticos. Nesses casos, quando mais duramente atacados através do exercício do direito à livre expressão, há governantes que soltam a sua indignação, que até pode ser compreensível ou mesmo justa, transformando-a, porém, em violentas censuras públicas, com utilização de expressões pouco próprias de quem governa.
Chamo a isso falta de “sentido de Estado”! Vou dar um exemplo.
O Presidente Richard Nixon foi um político profissional, experiente e bem sucedido em muitos aspectos. Negociou a retirada das forças dos Estados Unidos durante a guerra do Vietname, aproximou o seu país da República Popular da China e viajou até Moscovo, onde deu importante impulso às negociações com a União Soviética sobre a redução do armamento. Na política interna, travou dura luta contra a inflação, mediante o controlo de preços e salários e a redução dos gastos públicos.
Apesar disso, saiu humilhado da Casa Branca, na sequência do escândalo Watergate. Um aparentemente vulgar assalto a um edifício com esse nome, ocorrido em 1972, no período da campanha eleitoral que conduziu à reeleição de Nixon, esteve na origem de um escândalo político que acabou com a resignação do Presidente dois anos depois. O mérito da descoberta da verdade, ou seja, das ligações da Casa Branca ao assalto ao edifício Watergate e da descoberta de um sistema secreto de gravações, ficou a dever-se à persistência de dois jornalistas – Bob Woodward e Carl Bernstein – e à acção determinada e corajosa do seu jornal – o Washington Post. Por trás dos investigadores, um informador anónimo – conhecido como “deep throat” (garganta funda) – cuja identidade só viria a ser conhecida trinta anos depois. Nixon indignou-se, acusou a investigação, qualificando-a como infame e falsa, insultou os investigadores e o jornal. Ficaram célebres os seus acessos coléricos e a sua propensão para a utilização de vocabulário capaz de envergonhar um estivador. Negou, negou sempre a sua implicação e as suas responsabilidades.
Faltava-lhe, porém, um atributo importante para um político: a compostura. E outro, fundamental para um líder: o sentido de Estado.
O sentido de Estado pressupõe respeito pelo cargo, sentido do dever, correcção, sobriedade, equilíbrio, ética pessoal. Em suma, o sentido de Estado implica aprumo e, sempre que necessário, capacidade de distanciamento em relação a companhias e amigos.
Respondendo à pergunta sobre “o que esperamos de um primeiro-ministro”, o jornalista Luís Marques, escreve, nas páginas do suplemento de Economia do Expresso de 6 de Fevereiro, o seguinte: “Esperamos que governe bem, claro está. Mas esperamos que também respeite a Constituição, que respeite as instituições, que não queira impor a sua vontade a tudo e a todos, que não tenha conversas inconvenientes ao telefone, que não ataque jornalistas em público, que respeite a liberdade, a diferença e as opiniões contrárias, por mais incómodas que sejam”.
Na verdade, todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações. Quem o diz não sou eu; afirma-o a nossa Constituição, que garante igualmente a liberdade de imprensa.
No mínimo, exige-se de um estadista que respeite o juramento solene que proferiu no seu acto de posse e que respeite a Constituição, lei fundamental da República.
Desiludam-se, porém, os que pensam que me proponho “julgar” o nosso primeiro-ministro. Nunca o poderia fazer, desconhecendo, como desconheço, o conteúdo das escutas, o teor dos despachos produzidos e, até, qual o suporte processual em que estes foram exarados. Por outro lado, não pactuo com julgamentos de opinião pública, quando não com a usurpação da função da justiça.
No entanto, uma vez que, sobre a matéria, tenho lido e ouvido muitas incorrecções, gostaria de aqui deixar um comentário acerca do conceito de reserva da vida privada, no que particularmente diz respeito às figuras públicas. Trata-se de um conceito fluido, difuso, como resulta, desde logo, do nosso Código Civil, que estabelece que “a extensão da reserva é definida conforme a natureza do caso e a condição das pessoas”. Ou seja, este “direito ao resguardo” (diritto alla riservatezza) consente certas limitações. Assim, a notoriedade de certas pessoas faz com que não possam opor-se à divulgação de certos acontecimentos da sua vida. O interesse público sobrelevará, então, o interesse privado. São consequências do que a doutrina e os próprios media costumam designar “o custo da notoriedade”, a justificar um eventual “direito à curiosidade”, expressão sugestiva mas tecnicamente menos correcta. Mas, em qualquer caso, a compressão da privacidade relativamente a tais figuras, que, por nascimento, profissão, modo de vida, ou como consequência de acto voluntário, são figuras públicas apenas atinge os factos ou a actividade que têm que ver com a notoriedade da pessoa.
Resulta do que se disse que não será lícito a um governante invocar a privacidade para manter a reserva de conversas (ainda que privadas) que incidam sobre assuntos de Estado. Assim, ao contrário do que parece quererem fazer-nos acreditar, a faixa de protecção da vida privada das figuras públicas é bem mais estreita e vulnerável que a do cidadão comum. É bom que entendam que, ao oferecerem-se ao serviço público, os nossos políticos também se estão a expor mais. É o fatal corolário do ditado popular: “quem anda à chuva, molha-se”.
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