18/02/2010

MIGUEL CARVALHO

MIGUEL CARVALHO








Todos somos, enfim, arrastados para um charco, onde chafurdam antigos e actuais responsáveis políticos e editoriais

Enquadrado numa viagem oficial do Primeiro-Ministro à Rússia, o Governo português oferecia jantar a toda a comitiva no Hotel Kempinski.

Era uma noite em Moscovo.
Perto das duas da manhã, Sócrates sentou-se a uma mesa à conversa com meia-dúzia de jornalistas. Eu, que tinha estado um bom tempo a ouvir as deliciosas "estórias" contadas pelo José Milhazes, juntei-me ao tal grupo quando Sócrates já falava de pôr jornalistas na ordem e disciplinar os patrões deles - dentro da lei, claro - a bem da democracia e da saúde do regime. Cada um esgrimiu argumentos como pôde e quis, sem grandes excitações. Uns, que não lhe conheciam o registo azedo e a postura de quem engoliu um bengaleiro, ficaram mais espantados. Outros encolheram os ombros. O certo é que depois fomos todos dormir e ninguém se lembrou de escrever uma crónica sobre o assunto, indignado com as supostas "ameaças" do chefe do Governo.

Ora, quem ler a autobiografia de Katharine Graham, a saudosa "patroa" do Washington Post antes, durante e depois do Watergate, facilmente entenderá duas ou três coisas simples: primeiro, todos os governos têm a tentação do mando, uns mais refinados do que outros; segundo, um bom empresário da área jornalística não cede nem pactua com tentativas de interferência; terceiro, os jornalistas trabalham, investigam e reportam em liberdade o que, com rigor e preserverança, for considerado de interesse público. Katharine, que nunca deixou de conviver em eventos sociais com presidentes, ex-presidentes e outros políticos de turno, sorria e passava adiante a cada tentativa ou ameaça de beliscarem a empresa ou condicionarem o trabalho jornalístico da sua redacção. O Washington Post continuou a fazer o seu trabalho, sem cair em miudezas, campanhas de carácter ou recurso ao buraco da fechadura. Sabe-se como a história acabou: Nixon ainda durou. Mas pouco.
No momento que atravessamos, Portugal parece ter amanhecido fantoche de si próprio. O nacional-jornalismo combate no terreno político e os políticos escrutinam a liberdade de Imprensa, como se fossem especialmente dotados para tal. Hitler e Estaline são trazidos à liça - e da tumba - à laia de comparação, sem memória, razão ou ensino primário. Magistraturas desacreditadas pedem o que não sabem ganhar por respeito, independência e dever de ofício. Em Belém, e nos edifícios limítrofes, há quem continue a falar nas entrelinhas e por código sobre jogos políticos inchados de indignação. Todos somos, enfim, arrastados para um charco, onde chafurdam antigos e actuais responsáveis políticos e editoriais, cuidando que a lama lhes é estranha ou desconhecida.
Vai lindo o andor. Numa altura em que o País se empenha em replicar os piores momentos da I República, não sei o que me assusta mais: se um Primeiro-Ministro retorcido ou um jornalismo justiceiro. Ou os dois.

in"VISÃO"
11/02/10

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