Não sei quando é que se cunhou a ideia de que se "se vivem tempos maus pa- ra a liberdade de expressão". Não me lembro por exemplo de ter ouvido tal coisa quando o jornalista João Carreira Bom foi dispensado do Expresso por ter escrito uma crónica a chamar rei do tele-lixo a Balsemão - crónica que o então director do Expresso (agora no Sol) disse só ter sido publicada por não a ter lido antes. Ou quando Joaquim Vieira saiu do mesmo jornal por, segundo ele, divergências com o director em relação à redacção de uma notícia sobre Joe Berardo, anunciado accionista da SIC. Ou quando em 2008 Dóris Graça Dias denunciou a não publicação de um seu texto sobre um romance de Miguel Sousa Tavares, cronista do jornal.
Os três casos, mais aquele que ocorreu no DN quando em Agosto de 2004 a direcção de Fernando Lima decidiu não publicar uma crónica minha por ser "política", podem ser qualificados como clássicos atentados à liberdade de expressão. Foram até denunciados como "censura". No entanto, não só não foram pretexto para caracterização de "um clima" como parecem, inexplicavelmente, ter-se varrido da memória dos que, caso do director actual do Expresso, declaram nunca ter visto ou feito algo de parecido.
Quando Henrique Monteiro, que recusou a publicação de uma crítica literária alegando "não se tratar de uma crítica mas de um ataque ao autor", afirma que nunca viu nada de parecido com um director de jornal exprimir dúvidas a um cronista sobre o conteúdo de uma crónica quanto aos factos que imputa a outrem sem ser deles testemunha directa e considera isso "censura" estamos perante aquilo a que se chama double standard. Traduzindo: o que eu faço está sempre acima de suspeita, o que tu fazes é sempre suspeito.
Esta dualidade de critérios que permite "suspeitos por natureza" implica que pessoas e meios deixem de ser julgados pelo que efectivamente dizem e fazem e passem a ser condenados a priori, com base numa alegada "relação com o poder" (entendido como o governo, ou não existissem outros poderes, políticos ou não). O isolamento e abjecção de todos os que tenham o azar de ser assim identificados concretiza-se num vocabulário persecutório e insultuoso: "situacionistas", "oficiosos", "sequazes", "vendidos". Quem os chama assim são, claro, os independentes e desinteressados - não há motivações torpes a não ser as que se relacionem, com ou sem fundamento, com o tal "poder".
Que ao estabelecer esta divisão os "livres" estejam a fazer exactamente aquilo de que acusam o "poder" - criar uma classe de párias e pressionar, condicionar e conspirar para anular a expressão da liberdade é uma ironia que não escapará, felizmente, a toda a gente. Os tempos estão maus, sim, mas não tanto que se possa usar o nome da liberdade para acabar com ela.
in"DIÁRIO DE NOTÍCIAS " em 05/02/10
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