15/01/2010

Não há fumo sem fogo, o falso paraiso chamado DUBAI


DUBAILAND?

O xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum, o soberano do Dubai, vendeu-a ao mundo como a cidade das Mil e Uma Luzes, um Sangri-lá do Oriente Médio protegida das tempestades de areia que assolam a região.

É Abril de 2009 e alguma coisa está a mudar no sorriso do xeque Mohammed. Nessa terra do Nunca edificada num extremo do mundo, as
rachaduras começam a aparecer. O Dubai é uma metafora viva
do mundo globalizado neoliberal que pode estar desmoronando...

Entre os guindastes espalhados por toda parte, muitos estão
paralisados, como que perdidos no tempo, e há inúmeros
estaleiros de obras inacabadas, num abandono completo.

A canadiana Karen Andrews chegou ao Dubai há quatro anos atrás.
O marido tinha conseguido um bom emprego numa multinacional.
Assim que o casal aterrou no emirado, em 2005, as apreensões
desapareceram. "Parecia uma Disneylândia para adultos,
com o xeque Mohammed no papel de Mickey", relembra.

"A vida era fantástica". Não tardou muito e Daniel, o marido de Karen, comprou dois imóveis. Mas, pela primeira vez na vida, ele baralhou-se com as finanças. Karen começou a estranhar as confusões financeiras do marido.

Passado um ano, descobriu que Daniel tinha um tumor maligno
no cérebro. "Até então, eu não sabia nada a respeito das leis do Dubai, imaginei que o sistema local deveria ser parecido com o do Canadá, ou de quaquer outra democracia liberal". Ninguém lhe havia contado que no Dubai não existe o conceito de falência. Quem se endividar e não tiver como pagar vai para a cadeia.

No Dubai, quando um funcionário deixa o emprego, o empregador tem o dever de comunicar o facto ao seu banco. Caso tenha dívidas em aberto, todas as suas contas são bloqueadas e ele fica proibido de sair do país. "De repente, os nossos cartões de crédito deixaram de funcionar. Fomos despejados do nosso apartamento e não tínhamos mais nada". Daniel foi preso no dia do despejo, condenado a seis meses de prisão diante de um tribunal que só falava árabe, sem tradução.

"Agora estou aqui, sem nada, aguardando que ele saia da prisão", explica a mulher. Karen dorme dentro dum Range Rover há meses, no estacionamento de um dos hóteis mais chiques de Dubai, graças à caridade dos funcionários bengalis, que não tiveram coragem de a expulsar.

O caso de Karen não é único. Por toda a cidade existem emigrantes dormindo clandestinamente nas dunas de areia, no aeroporto ou no próprio carro. "É preciso entender que no Dubai nada é o que aparenta ser", resume a canadiana. "Você é atraído pela idéia de um lugar moderno, mas por trás dessa fachada o que temos é uma ditadura medieval."

Trinta anos atrás, quase toda a área onde se ergue hoje o emirado do
Dubai era deserta. Foi quando os ingleses bateram em retirada; dominavam-no desde o século XVIII. Até que em 1971, o Dubai se juntou a seis pequenos estados vizinhos e formaram a federação dos Emirados Árabes Unidos. A retirada britânica coincidiu com a descoberta de generosos lençóis de petróleo na região.

Al Maktoum decidiu fazer o deserto enriquecer. Planeou construir uma
cidade que se tornasse um centro de turismo e de serviços financeiros, atraindo dinheiro e profissionais do mundo inteiro. Convidou o mundo a seu paraíso fiscal - e o mundo veio, esmagando os habitantes locais, que agora representam só 5% da população total do Dubai.

Em apenas três décadas uma cidade inteira surgiu do nada. Um salto do
século XVIII para o século XXI, apenas numa geração.

Todas as noites os milhares de peões estrangeiros que constroem o Dubai são levados dos estaleiros das obras para uma imensidão de cimento, em pleno deserto, distante uma hora da cidade. Ali permanecem isolados. São levados em camionetas fechadas, que funcionam como estufas no calor do deserto. São cerca de 300 mil homens que moram amontoados.
Nesse local que fede a esgoto e suor e que foi o primeiro acampamento que visitei, fui logo cercado por moradores, ávidos para desabafar com quem se dispusesse a ouvi-los.

Depois de muito ouvir, indago se o grupo se arrepende de ter vindo. Todos olham para baixo. Depois de um tempo, alguém rompe o silêncio: "Sinto saudade de meu país, da minha família, da minha terra. Aqui, não dá para plantar nada. Só há petróleo e obras."

Um cidadão inglês que trabalhou no sector da construção disse-me:
"Ocorrem inúmeros suicídios nos acampamentos e nas obras, mas ninguém quer tocar no assunto. Dizem que foi acidente."

Um estudo da ONG Human Rights Watch revelou que existe um ocultamento da real extensão das mortes causadas pela exposição ao calor, excesso de trabalho e os suicídios.

Na distância, a cintilante silhueta do Dubai ergue-se indiferente.
O dia tem sempre a mesma luminosidade artificial, o mesmo piso brilhante, as mesmas grifes de luxo globais. Neles, o Dubai reduz-se à sua
essência: compras e mais compras.

Como se sente o cidadão local diante da ocupação de seu país por
estrangeiros? Quando abordados, as mulheres calam-se e os homens ofendem-se, respondendo secamente que está tudo bem.

Concluo que não é prudente andar a perguntar essas coisas aos dubaienses. O Dubai não é apenas uma cidade vivendo além de seus recursos financeiros. O emirado vive além de seus recursos ecológicos. O Dubai bebe o mar. A água dos emirados, dessalinizada em fábricas espalhadas por todo o Golfo, é a mais cara do planeta. Segundo Dr. Raouf, caso a recessão se transforme em depressão, o Dubai pode ficar desabastecida. O aquecimento global piora ainda mais a situação.

"Estamos construindo todas essas ilhas artificais, mas se o nível do mar subir afunda tudo..."

Na minha última noite no emirado, já a caminho do aeroporto, parei numa pizzaria perdida no meio das autoestradas. Pergunto à empregada filipina do balcão se ela gosta do lugar. "Gosto", diz ela, inicialmente. "Pois eu detesto", rebato. Ela concorda e desabafa: "Demorei alguns meses para perceber que tudo aqui é falso. Tudo. As palmeiras são falsas, os contratos de trabalho são falsos, as ilhas são falsas, os sorrisos são falsos... O Dubai é como uma miragem. Você acha que avistou água, mas quando chega perto vê que é só areia."

O estacionamento do aeroporto está repleto de carros de luxo, não entregues, abandonados por pessoas que voltaram aos seus países de origem.

(Segundo a reportagem alguns nomes nesse artigo foram modificados)
O artigo é bem mais extenso, mas cuidei de resumir a reportagem de Johann Hari, sem tirar ao leitor a possibilidade de entender o que é, de facto, esse
paraíso, chamado Dubai.

Lucelena Maia/ Revista Piauí 06/2009.

enviado por D. A M.

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