Freeport XVIII: o meu primo é um mestre de 'kung fu'
por João Miguel Tavares
Só faltava mesmo o surgimento do jovem herói de Shaolin para transformar o caso Freeport numa ópera bufa que alguém devia levar à cena. Se eu estivesse a assistir a uma telenovela venezuelana onde um dos protagonistas tivesse decidido, numa altura delicada, partir para a China para estudar kung fu, teria encolhido os ombros e suspirado:"Estes argumentistas já não sabem o que mais hão-de inventar." Ao ver o primo de José Sócrates na primeira página do Expresso, empoleirado num pilar como se estivesse a ensaiar para o Karate Kid IV, comecei a rir de incredulidade - e ainda não parei. Aliás, isto é o mais próximo que alguma vez vi da famosa piada dos Monty Python que matava as pessoas à gargalhada.
Caro leitor: eu percebo que você ande enjoado. Eu próprio, semana após semana, sento-me em frente do computador para escrever mais um texto para esta página e a mão está sempre a fugir-me para Alcochete. Mas será que a culpa é minha? Por amor de Deus: depois daquele tio, agora sai-nos um primo vestido de Bruce Lee, a treinar artes marciais no templo de Shaolin e a chamar pelo nome de Wu Guo, "o guerreiro profundo"? Sobre o que é que querem que eu escreva, se nem a família Adams é tão divertida? É a mesma coisa que um paleontólogo tropeçar num osso de dinossauro e virem criticá-lo por começar a escavar.
Desde que o site do DN mudou e os leitores passaram a poder escrever comentários aos textos dos colunistas, sou frequentemente instado a confessar o que me move contra José Sócrates e qual é a minha "agenda". Meus caros amigos: eu não tenho agenda, eu não tenho partido e a minha única ambição política é conseguir governar a minha biblioteca. Acreditem ou não, ainda há seis meses estava convencidíssimo de que iria votar no engenheiro Sócrates nas próximas legislativas, sobretudo perante a tragédia que foram os primeiros meses de Manuela Ferreira Leite. Mas subitamente entrámos na twilight zone política e judicial no que ao Freeport diz respeito. E não há como virar a cara.
Só esta semana, tivemos: 1) O senhor procurador-geral a interpor um processo disciplinar devido a pressões que ele próprio garantira não existirem. 2) Ilustres juristas a defender que conversas privadas não são pressões mas delações (as pressões costumam ser feitas em conversas públicas, como toda a gente sabe). 3) Um jovem herói de Shaolin - que até hoje nunca foi escutado pela justiça portuguesa - a desmentir o seu primo quanto ao seu conhecimento de Charles Smith. E podia continuar. Lamento muito, mas o caso Freeport transformou-se numa tragicomédia acional, que põe ao léu uma República grotesca, sem princípios, sem carácter e completamente disfuncional. Sobre o que hei-de eu escrever, se a vergonha já se estende desde aqui até à China?
enviado por ANTÓNIO CUNHA
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