23/08/2017

JOÃO TABORDA DA GAMA

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O morro e o asfalto

Ficando feito o Brasil, depois são poucos os países onde nunca fui e onde quero ir. No fundo no fundo talvez só o Irão, que mais coisa menos coisa é onde tudo começou, e à luz das imagens parece sempre que já lá estive. Teerão da Revolução do Kapuscinski, Tabriz do Toni, Qom do Naipaul, as casas de Marjane Satrapi, e ali ao pé de Persépolis, Pasárgada de Manuel Bandeira.
Quando lá chegar para a semana pela primeira vez levo já quarenta anos de Brasil imaginado. Nem carnaval, nem fim de ano, nem praia, nem conferências académicas, nem viagem de finalistas, nem trabalho, nunca nada até hoje me tinha levado daqui lá. Na minha cabeça o Brasil é uma espécie de Portugal alternativo que em adolescente se convenceu de que era América e não Portugal, saiu de casa, mudou a identidade, começou de novo, tentou ser quem era. Talvez seja uma construção em cima do Brasil como "Portugal à solta" do Agostinho da Silva, talvez seja.
Dizem-me de tudo, vais adorar, não vais querer voltar para Portugal, vais odiar, não percas tempo com aquilo, não vás, já devias ter ido há mais tempo, São Paulo é a melhor cidade do mundo, São Paulo é a o pior do mundo. São poucos os segundos para sabermos se gostamos de um sítio (lembrar que lá sítio não quer dizer sítio). Tinha tirado este verão para ler sobre a reforma agrária, acabei por ler sobre cidades. Um dos melhores que li foi o The Image of the City, do Kevin Lynch (1960), sobre a formas das cidades, o seu planeamento, e muito mais. Fala da legibilidade das cidades, das pistas sensórias que estão lá e fazem que seja rara a experiência de nos sentirmos verdadeiramente perdidos. Acredito que estas pistas se conseguem ler na pista do aeroporto, mal se abrem as portas, mesmo enfiados na profilaxia das mangas, e adiando a primeira inspiração livre.
Uma parte do tempo estarei a dar aulas em São Paulo, na Fundação Getúlio Vargas. A cadeira que desenvolvi chama-se The Laws of the City, e é uma semana sobre como a sharing economy faz que as cidades sejam centros de coexistência de várias legalidades concorrentes, sobretudo através de fenómenos como a Uber e a Airbnb. Fenómenos que até acordam um poder de fazer leis que andava meio adormecido nas cidades. É o paradoxo daquilo que se pode chamar a glocalização, um mundo global, interconexionado, mas que encontra para fenómenos universais respostas regulatórias diferenciadas não apenas quando se muda de país, mas de cidade para, num segundo momento, as cidades, passando por cima dos estados e dos países, tentarem entre si encontrar formas coordenadas de resposta a esses fenómenos da dita economia da partilha.
As ideias mais apaixonantes, talvez as únicas que valem a pena, são as que são perigosas, precisamente aquelas que nunca poderíamos transformar em lei universal. No direito há uma ideia apaixonante, talvez a mais apaixonante, talvez a única apaixonante, que é a de que pode haver leis que não são feitas nem pelos governos, nem pelos parlamentos, é a ideia de pluralismo jurídico. É um conceito muito lato e impreciso, mas tem no seu cerne a não existência de um monopólio da lei por parte do Estado. Falava-se de pluralismo jurídico a propósito das normas que aplicavam os povos colonizados, fala-se hoje a propósito da existência de standards técnicos que são tidos como obrigatórios desenvolvidos por empresas ou associações privadas. Coisa que pouca gente sabe, e ninguém estudou, em Portugal os tribunais não raras vezes fazem alusões à lei cigana, umas vezes com aspas, outras sem, mas dando algum reconhecimento aos casamentos assim celebrados.
Uma das obras fundamentais sobre pluralismo jurídico chama-se Law Against Law: Legal Reasoning in Pasargada Law, escrita em 1973 na Universidade de Yale, sobre as normas que eram aplicadas numa favela do Rio, as leis e as leis próprias da favela, sobretudo as relacionadas com a propriedade das casas construídas sobre uma terra de ninguém. Pasargada, que não é o nome da favela, é o nome dado à favela na tese em homenagem ao poema de Bandeira "Vou-me embora pra Pasárgada": "Vou-me embora pra Pasárgada. Lá sou amigo do rei. Lá tenho a mulher que eu quero. Na cama que escolherei. Vou-me embora pra Pasárgada (...)". Law against Law é a tese de doutoramento de Boaventura de Sousa Santos. Boaventura, ao contrário do que acha alguma da direita acéfala, e do que deseja alguma da esquerda invejosa que nunca saiu de Portugal, mesmo tendo saído de Portugal, é dos mais interessantes e sólidos pensadores do direito que nasceu em Portugal e dos poucos reconhecidos na academia global (sem dúvida único na sua geração, hoje acompanhado de nomes como Nuno Garoupa e Poiares Maduro). Fui educado numa academia jurídica onde os seus textos não eram sequer referidos e, com certeza por culpa minha, só descobri o Boaventura jurídico há poucos anos, nos Estados Unidos, ultrapassando o preconceito e lendo de rajada o que pude. Pouco importa que não concorde com muito do que diz, e sobretudo com a linha onde se insere (que aliás não esconde), mas são daqueles textos que nos fazem mais espertos e onde se sente o gozo que teve quem os fez, pensou, escreveu.
A ideia de que não só do Estado nasce a lei tem tanto apelo ao marxismo revolucionário como a um libertário em busca. No Law against Law conta como os habitantes da favela distinguem a lei do morro e a lei do asfalto, asfalto como cidade urbanizada por oposição ao morro de caminhos de terra e de lama. E é esse morro e esse asfalto que continuam por lá, cada vez mais morro e cada vez mais asfalto, cada vez mais desiguais, que vou tentar perceber, tentar perceber o que é o Brasil, o que poderíamos ter sido, e olhar de novo para os nossos morros e os nossos asfaltos.
IN "DIÁRIO DE NOTÍCIAS"
20/08/17
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