De Detroit a Lisboa:
a batida que faz a diferença
Mike Duggan, mayor da Motor
Town, proclamou esta semana, que se estende até ao próximo dia 30, como a
Detroit Techno Week, colocando todo o seu peso institucional atrás do
Movement, um festival dedicado à principal exportação eletrónica da
cidade, que este ano terá os Kraftwerk ou Four Tet como cabeças de
cartaz, ao lado de lendas locais como Kyle Hall ou Kevin Saunderson e
Carl Craig.
Detroit tem, já se sabe, uma longa tradição musical:
foi uma das fontes do “sound of young America” com a Motown de Berry
Gordy; foi proclamada “Rock City” pelos Kiss, epíteto mais do que
merecido, tendo sido aí que se impuseram nomes como os Stooges, os MC5
ou, mais tarde, os White Stripes; foi berço de uma fortíssima tradição
jazz e blues, com pessoas como Yusef Lateef, Elvin Jones, Betty Carter
ou John Lee Hooker a terem aí nascido ou pelo menos a terem reclamado a
cidade como a sua principal base.
Detroit é, também, uma das
primeiras cidades pós-industriais da América, uma das primeiras vítimas
das transformações económicas globais que colapsou financeiramente
perante os problemas da poderosíssima indústria automóvel que aí tinha
um dos seus principais focos industriais. Hoje, o mayor Duggan
vê no techno uma força de renovação, de sobrevivência e de potencial
crescimento. E por isso abraça a cultura, uma das mais distintas aí
nascidas, que influenciou o mundo de forma inequívoca e que consagrou a
visão das “inner cities” em música extraordinária.
As “inner
cities” não existem em Lisboa, mas existem as periferias, que têm gerado
um idêntico burburinho electrónico que também tem carregado as novas
identidades da cidade para fora das nossas fronteiras. De certa maneira,
o mayor Fernando Medina reconheceu isto mesmo ao permitir que
os Buraka Som Sistema fechem a sua digressão de despedida na cidade que
os viu nascer, com um concerto no próximo dia 1 de julho nos Jardins da
Torre de Belém. Curioso é que o reconhecimento que vem da instituição
autárquica não se estenda à “comunidade” (as aspas aqui traduzem ironia –
e não me dispenso deste esclarecimento adicional para que a ideia
resulte mesmo clara) da música elctrónica lisboeta.
Passo a
explicar: a instituição itinerante Boiler Room, plataforma internacional
de divulgação de música eletrónica que promove em cidades espalhadas
pelo mundo algumas das melhores festas do género, difundindo-as depois
para o planeta internet com streams de vídeo e áudio, regressa a
Lisboa para uma festa a 2 de junho, em que entrega o “line up” ao
cuidado dos Buraka Som Sistema, que escolheram como aliados nomes como
os internacionais DJ Marky ou Dengue Dengue Dengue e os nacionais
Batida, DJ Nervoso, DJ Firmeza, DJ Lilocox ou DJ Maboku. Logo que o
cartaz foi divulgado, as redes, esses palcos de linchamentos avulsos e
de justiças populares, incendiaram-se com críticas: “que raio de
alinhamento é este?”, “este som não representa Lisboa”, “isto não é
techno nem é nada” e mais mimos do género citados aqui de memória que
estas ideias não são coisas que se guardem.
Para lá do
indisfarçado racismo de muitos dos comentários e da incapacidade de
reconhecer que não é procurando soar igual a Londres ou Berlim que nos
vamos afirmar, antes identificando e desenvolvendo um ADN singular,
decididamente gerado dentro de portas, mas com óbvio potencial de
explosão global – trabalho que Buraka e a Enchufada, primeiro, e a
Princípe, depois, fizeram de forma exímia. É assim que se assegura o
futuro.
Há 30 anos, imaginou-se o que seria se os Kraftwerk e os
Parliament ficassem fechados num elevador apenas com um sintetizador
para fazerem barulho. A explosão techno subsequente, que estabelece uma
linha directa de Juan Atkins a Richie Hawtin, foi a resposta que o mundo
aprendeu a dançar e que o mayor Duggan agora aplaude. Se
calhar, daqui a uns anos, Lisboa, cidade de fado e de rock, de jazz e de
rap, também vai ter a sua Semana da Batida, com direito a proclamação
formal nos Passos do Concelho e tudo, com condecorações municipais
entregues a Branko e Kalaf, a Conductor, Riot, Blaya e Marfox, a Pedro
Coquenão e DJ Nervoso e a quem mais merecer a distinção. Não me
importaria nada de ter uma capital assim..
IN "BLITZ"
24/05/16
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