Uma dúvida hortográfica
Foi há uma dúzia de anos na feira hippie
de Ipanema, no Rio de Janeiro. Acabado o demorado namoro de um quadro
naïf (que ainda não me arrependi de ter comprado) e fechado o processo
de negociação do preço, o pintor/vendedor não conseguiu disfarçar mais a
sua curiosidade e perguntou-me: "Cê é mesmo quê? Árgentino?"
Não
duvido da importância da língua portuguesa e do impacto económico de ser
falada por 250 milhões de pessoas (3,7% da população mundial) que em
oito países de quatro continentes produzem 4% da riqueza mundial.
Não
ouso sequer duvidar das conclusões do estudo do ISCTE, que garantem ser
a língua portuguesa uma das mais influentes do Mundo (é a 7.ª mais
falada), estar em expansão e ter um valor calculado em 30,8 mil milhões
de euros!
A dúvida só surge quando reflito numa data de episódios
aparentados com o da feira hippie de Ipanema e tendo a pensar que sendo o
português a língua que angolanos, brasileiros, moçambicanos,
timorenses, portugueses, guinéus, cabo--verdianos e são-tomenses falamos
oficialmente, na verdade prática do dia a dia a língua não é a mesma.
Quando
cheguei à Madeira, onde vivi o atribulado ano de 1981, os razoáveis
conhecimentos da língua portuguesa, que me tinham permitido tornar-me
jornalista e cursar História, revelaram-se insuficientes para
desempenhar as funções que o exército me atribuíra.
Precisei de
tradutor, quando um soldado me disse que faltara à primeira formatura da
manhã porque "perdera o horário" (1). E voltei a necessitar de
intérprete quando, durante uma semana de campo, um outro rapaz me pediu
autorização para "ir em cima dos pés" (2).
O vermezinho da dúvida
instalou-se em definitivo ao ler e ouvir o otimismo de quem acha que o
novo Acordo Ortográfico (novo é uma maneira de dizer, pois foi aprovado
em 1990, quando ainda ninguém sonhava com o Google, o euro ou o
Facebook) é o remédio santo que miraculosamente facilitará a comunicação
entre 250 milhões de pessoas que falam uma língua que parece a mesma,
mas na verdade não é, se não as novelas e filmes portugueses não tinham
de ser legendados para passar no Brasil.
Até acho graça ao Acordo
Ortográfico, mas não acredito na sua eficácia. Apesar de - desde que em
1419 Gonçalves Zarco descobriu a Madeira - ter estado sempre em vigor o
mesmo Acordo Ortográfico com aquele arquipélago, tive de aprender uma
data de coisas para me desembrulhar no ano em que fui cubano no couto do
Alberto João.
É por isso que não ligo muito à hortografia (sei
que não é assim que se escreve, mas, c'os diabos, lê--se da mesma
maneira), que acho sobrevalorizada relativamente à fonética. E não
simpatizo com vãs tentativas de aprisionar uma coisa tão viva e rica
como a nossa língua. Por isso, dou às discussões sobre o Acordo
Ortográfico a mesma importância que às reivindicações dos Amigos de
Olivença. Bizantinices!
(1) Horários do Funchal é o nome da
empresa de transportes públicos equivalente à nossa STCP. Perder o
horário é a expressão madeirense para perder o autocarro.
(2) Dito por outras palavras, ele estava com precisão de satisfazer as suas necessidades fisiológicas de caráter sólido.
IN "JORNAL DE NOTÍCIAS"
01/09/13
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